Não é verdade que os brasileiros vivam num estado disfarçado de guerra civil. Equivoca-se quem alardeia ou noticia a permanente e violenta guerrilha urbana dos apinhados morros cariocas, das miseráveis periferias de São Paulo e Curitiba e de todos os outros grandes centros brasileiros. Não, o país não está em guerra. Não mais. Nós a perdemos há muito tempo. As formigas nos venceram e é justo que agora reclamem seu espólio.
E aqui não trato apenas dos insetos da família dos formicídeos, as populares saúvas, que já em 1915 o major Quaresma vaticinava que acabariam com o Brasil, se este não as exterminasse. O exército que ataca e destrói o país e seu povo é muito maior. Quem alerta é o próprio Lima Barreto.
Sete anos após o lançamento do inesquecível Triste fim de Policarpo Quaresma, o jornalista carioca publicou, em 1922, o pouco conhecido Os Bruzundangas. Nele descreve os batalhões de ratos, gafanhotos, cracas, vermes e sanguessugas da política e da sociedade que destroem sistematicamente o país numa voracidade e velocidade superiores à das formigas-da-roça.
Bruzundanga é o país da tramóia deslavada, do nepotismo escancarado, da corrupção descarada, da trapalhada, da impunidade. Um país entre as zonas tropical e subtropical, onde a elite, ignorante e frívola, admira escritores que não entende. Onde a nobreza cultural sobrevive às custas dos incentivos governamentais e o povo é “doce e crente, mais supersticioso que crente”. Características que o incauto leitor pode julgar semelhantes às do nosso país. E não erraria na comparação entre a Bruzundanga do início do século passado (1922!) e o Brasil atual. A começar pela literatura. Vejamos.
Todos os literatos importantes solenes e respeitados em Bruzundanga são incompreensíveis. Quanto menos inteligível o escrito, maior a admiração pelo escritor. Outro fato curioso é que escritores e poetas são adeptos e admiradores da literatura do povo samoieda, que vive às margens do Ártico, na Sibéria, e alimenta-se de carne de mamutes conservados há centenas de séculos nas geleiras daquelas regiões.
Apesar de estatura baixa, pouco menor que a dos lapões, de cabelos e pele negros como o jade, são descritos pelos intelectuais bruzundanguenses alvos e altivos como os gregos. E apesar do país ficar nas zonas tropicais, usam no vestuário peles de urso, de martas e de raposas árticas, exatamente como os mestres samoiedas.
É um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas caríssimo para os seus parentes literários dos trópicos. Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística, morrem de fome, mas vestem-se à moda da Sibéria.
Todos eles fizeram fortuna e adquiriram respeito nos corredores das secretarias e nos desvãos do Tesouro da República, após seguidas publicações de obras com incentivos governamentais que, logo após impressos, são distribuídos a quem as queira.
Todos as aceitam e logo passam adiante, por meio de venda. Não julgue o meu correspondente que os “sebos” as aceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, tão inflamadas de um otimismo de encomenda que ninguém as compra, por sabê-las falsas e destituídas de toda e qualquer honestidade informativa, de forma a não oferecer nenhum lucro aos vendedores de livros, por falta de compradores […] se quer ter informação de entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos, pois todos as pedem nas repartições para vendê-las a peso aos retalhistas de carne, aos vendeiros e aos vendedores de couves.
O mesmo tipo de mecenato ocorre hoje nas imprensas oficiais estaduais e nas fundações culturais municipais de todo o Brasil.
Sobre o sistema político, Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes. Em Bruzundanga e no Brasil ocorre o oposto.
A política não é aí uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém, uma vulgar especulação de cargos e propinas […] Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República.
A situação não parece semelhante aos milhares de cargos comissionados rateados pelo governo do Partido dos Trabalhadores (leia-se Silvio Pereira) e aos atos de um tal nepotista esclarecido, como ele próprio se define, que reina em terras do Sul?
“Não há pretos”
Caso cômico em Bruzundanga é o do obeso visconde de Pancôme, que se tornou ministro e herói nacional ao escalar uma montanha. Ao assumir o posto de embaixador na Europa, ganhou fama pelas propinas e jantares oferecidos aos estrangeiros mas, principalmente, por demitir todos os funcionários mestiços de seu país que trabalhavam na embaixada. Lançava labéus de vergonha aos compatriotas de tal extração.
Em seguida, convenceu o presidente que o país devia ser conhecido na Europa por meio de uma imensa campanha publicitária e em anúncios nos jornais. Sua vontade foi feita e em todos os boulevards de Paris foram fixados os célebres anúncios luminosos: “Bruzundanga, país rico — Café, cacau e borracha. Não há pretos”.
Bruzundanga tem todos os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria. Tudo por causa do governo e de sua política econômica que, basicamente, vive de taxar os produtos a tal ponto que os importadores perdem o interesse por eles e o povo não pode consumi-los. “A nossa população é em geral pobríssima e nós não devemos sobrecarregá-la fiscalmente”, defendia o ministro da Economia da Bruzundanga, o deputado federal doutor Karpatoso.
O que não o impediu que propusesse, a título de diminuir os sucessivos déficits dos balanços, o aumento das taxas sobre o açúcar, o café, o querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo, roupas de algodão, etc.
— Vossa excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.
— Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos, seria até benefício, visto que o preço da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de muitos, o preço dos gêneros baixará fatalmente.
— Vossa excelência vai obrigar o povo a andar nu.
— Não apoiado […] A seda e a lã ficarão pouco mais caros que tecidos de algodão. Toda gente vestir-se-á de seda ou lã e a população de nossa cidade terá um ar de abastança que muito favoravelmente há de impressionar os estrangeiros.
A arrecadação de impostos tem batido sucessivos recordes no Brasil. Isso porque os encargos representam entre 40% e 50% do Produto Interno Bruto do país. Boa parte da arrecadação é utilizada para o pagamento de juros da dívida brasileira, que hoje chega a R$ 1 trilhão. Os juros no Brasil são os maiores do mundo, seguidos pelos da Turquia, onde a taxa anual não atinge a metade da brasileira.
Por fim, os donos de terras, os trabalhadores rurais e os doutores da Bruzundanga. Lá o café é tido como uma das maiores riquezas do país; entretanto é uma das maiores pobrezas. Porque o café é o maior “mordedor” das finanças nacionais.
Explico melhor. No país, o café, assim como a cana-de-açúcar, o cacau e a borracha, são a base da oligarquia política que domina a nação. E são cultivados em grandes latifúndios que pertencem a essa gente. Os proprietários vivem nas cidades, gastando à vontade, levando vida de nababos e com fumaças de aristocratas.
Quando os produtos não lhes dão o bastante para a sua imponência e a das suas famílias, começam a reclamar que é preciso salvar a agricultura, que é a base da economia do país. E assim arranjam empréstimos de milhões junto ao governo. Feito isso, a coisa está acabada. Os oligarcas nadam em dinheiro, todo o país paga os juros e os empréstimos e o povo fica mais escorchado de impostos e vexações fiscais.
Enquanto isso, a população rural vive sugada, maltrapilha, macilenta e explorada pelos nobres de palpite que controlam os latifúndios abandonados e indivisos. Todos muito semelhantes em atitude e pensamento com os senhores do agronegócio brasileiro. Aqui e lá, todos dignos de ironia e piedade por causa de sua ingenuidade infantil e sua idiotice senil.
Faltou-me aqui comentar sobre a academia de letras, a formação dos doutores, o ensino e a diplomacia da Bruzundanga. Falta de espaço e não de ânimo. Mas fico por aqui.
Em relação ao Brasil, também me passou ao largo, mas não do esquecimento, o dinheiro na cueca e nas meias, os mensaleiros e a máfia das ambulâncias. Mas também fico por aqui.
O que me (nos) resta é banquetear as formigas com as batatas, os dedos e os anéis. E que nos locupletemos todos. E fico por aqui.