Dentre todos os gêneros literários, talvez a fábula seja aquele que tenha maior longevidade e, ao mesmo tempo, seja o de mais difícil definição. Porque embora ela tenha sido inaugurada no Ocidente com Esopo, a fábula transcende a civilização ocidental e se espraia por todas as línguas e culturas existentes, tornando-se quase impossível defini-la em sua essência. Podemos pensar em alguns traços que lhe são característicos: o gosto pelo maravilhoso, a tendência antropomórfica de humanizar e dar consciência a animais e até a outros seres inanimados, o teor moral e edificante, a inclinação para a caricatura, entre outros.
Porém, ainda assim estaremos sempre diante de peças literárias cuja estrutura nunca podemos saber ao certo se pertence à tradição da fábula ou se apenas lança mão de elementos próprios a toda a ficção, em sua história milenar. E aqui podemos pensar em alguns casos clássicos: o Asno de Ouro de Apuleio, os contos de Voltaire, algumas novelas de Cervantes, como o Diálogo dos Cães, por exemplo, a Maravilhosa História de Peter Schlemihl de Adelbrecht von Chamisso, as peças de Henrich von Kleist, as narrativas maravilhosas de Téophile Gautier até alguns nomes de proa da literatura moderna, como Kafka, Beckett, Ionesco, Joyce, entre tantos e tantos outros. Isso para não falar na fronteira tênue que separa a dita literatura fantástica latino-americana desta tradição fabuladora e fantástica bem mais ampla, antiga e abrangente. Para se ter idéia disso, basta lembrar que entre os livros de devoção de Gabriel García Márquez, aqueles que foram responsáveis pela guinada fantástica de sua obra, se encontram o Pedro Páramo de Juan Rulfo e As mil e uma noites.
Os lançamentos das Fábulas de La Fontaine — uma das obras mais importantes do gênero, se não a mais importante — pela editora Landy, com ilustrações de Gustave Doré, e pela Estação Liberdade, com ilustrações de Marc Chagall, são grandes acontecimentos, não apenas para se redimensionar o assunto em termos teóricos, mas também pelo saboroso resultado poético que o escritor francês obteve unindo com rigor e propriedade esses elementos característicos do gênero que mencionei acima. Além do quê, é urgente recuperar e repensar esse tipo de literatura que propõe uma representação não realista e não naturalista da realidade, tendo-se em vista o vínculo forte que ela mantém com o que de melhor se produziu na literatura moderna e, pode-se dizer, com o que de melhor se produz hoje em dia.
Um dos méritos da edição da Landy é que ela é uma miscelânea de diversos tradutores de épocas e procedências diversas, todos eles vertendo para o português a obra máxima de La Fontaine. Desde artífices exímios do século 18, como Filinto Elísio, também grande tradutor de autores latinos, como Catulo e Tibulo, passando por nomes mais famosos, como Machado de Assis e Bocage, até o Barão de Paranapiacaba, o livro é uma edição integral das fábulas, assinada por dezenas de excelentes tradutores, portugueses e brasileiros. E o mais importante: em versos. Diferente de tantas edições que planificam a arte de La Fontaine, colocando-a em prosa corrente, e assim perdem todos os efeitos métricos, rítmicos e prosódicos de sua poesia. Estranho apenas que edição tão cuidadosa não traga sequer uma única nota editorial falando dos tradutores e dos critérios de compilação das diversas fábulas. Também seria oportuna uma apresentação, ainda que sucinta, de autor, contexto e obra, o que não há. E o leitor fica na completa ignorância, sem saber quem são afinal aqueles nomes que assinam o final de cada peça vertida ao português e sem poder situar o grande poeta do século 17 e sua obra dentro de sua época. Apenas uma nota na orelha sobre a corte de Luis XIV e o seu círculo de amigos e escritores, que contava com gente da envergadura de Boileau, Moliére, Racine.
Muitas das fábulas contidas nesse volume já são correntes, algumas chegaram até a se imiscuir no imaginário popular. É o caso das famosas estórias da Cigarra e da Formiga e do Leão e do Cordeiro. A presença de animais, ditados, sentenças filosóficas e morais, misturados a metamorfoses, como é o caso da divertida fábula da Gata transformada em mulher, e isso tudo temperado com mitologia e acontecimentos maravilhosos: eis o tom e o tino da obra de La Fontaine. Além de entreter, mover as paixões, educar e deleitar, como diz Aristóteles, suas Fábulas cumprem hoje um novo papel. Servem para provar de uma vez por todas que o real não é nada mais nada menos que uma variação do Mito. E que nunca estaremos tão longe dele quanto mais o quisermos possuir, analisar e representar de maneira fiel e fidedigna. Verdade não há, só há ficção e linguagem. Para falar com Novalis: quanto mais poético — mais verdadeiro. Esse parece ser o coração da fábula. E por extensão, de toda a literatura.