Todos sabem que o segmento infantil responde hoje pela maior fatia da venda de livros no Brasil, e que o bom desempenho se deve quase que exclusivamente às generosas compras feitas pelo poder público para utilização nas escolas. Poucos, porém, se detêm na grandeza das cifras envolvidas, na quantidade de novos títulos lançados a cada ano para atender a essa demanda e nas engrenagens que se movem por trás da produção de livros para a petizada, onde o aspecto comercial sobrepõe-se ao literário com indesejada freqüência. Pode alguém argumentar que o fenômeno não é reserva de mercado desse segmento: basta que um produto se destaque em vendas para que logo a tentação de perpetuar o bom negócio aflore e comecem a aparecer “variações”, no mais das vezes carentes das virtudes do original. Isso quando a própria matriz já não for de qualidade discutível. Mas, no caso da literatura infantil, há particularidades bem mais infames, a começar pela presunção equivocada de que escrever para crianças é mais fácil do que escrever para adultos. A conseqüência mais imediata são historinhas sem pé nem cabeça e versinhos idiotas. E, afinal de contas, o mais importante é que o livro infantil seja atraente para seduzir o leitor mirim. Assim, as ilustrações e o projeto gráfico, que cada vez tendem a ficar mais vistosos, compensariam a eventual falta de criatividade do texto — algumas vezes, chegam a dispensar o próprio texto!, como se fosse possível produzir literatura sem sua matéria-prima (e há quem acredite sinceramente numa sandice dessas, a ponto de confundir um mero brinquedo em formato de livro com um livro de verdade).
A outrora tão corriqueira cena da mãe lendo histórias para o filho começa a desaparecer da vida familiar, e uma das causas pode bem estar no fato de que para os pais fica a cada dia mais difícil encontrar nos livros infantis o que ler para os filhos. Porque histórias são construídas com palavras e só se tornam interessantes se forem bem contadas, independentemente da idade do público a que se destinam. Daí ser sempre bem-vinda qualquer iniciativa que fuja da perniciosa tendência e valorize o essencial. Neste contexto, é mais do que oportuno o lançamento no Brasil de Contos da selva, do uruguaio-argentino Horacio Quiroga, coletânea lançada pela primeira vez em 1918 reunindo oito fábulas que haviam sido publicadas em magazines de Buenos Aires ao longo dos dois anos anteriores e que, quase um século depois, ainda não perderam o viço de novidade.
Cuentos para niños
Na definição clássica, a fábula é uma narrativa curta, de natureza alegórica, tendo como personagens animais que agem como seres humanos e encerrando sempre um ensinamento, introduzido muitas vezes pela expressão “moral da história” característica. O lendário Esopo, a quem se atribui a paternidade da fábula como gênero literário, teria vivido no século 7 a.C. De lá para cá, vários autores têm se dedicado a ela, em particular o francês La Fontaine, no século 17, pai da fábula moderna e o mais famoso dentre todos os fabulistas. De lá para cá, também, o conceito vem se tornando cada vez mais elástico para abrigar, sob a mesma denominação, outras possibilidades que tenham o mesmo escopo. Ainda assim, Quiroga preferiu chamar suas narrativas de “cuentos para niños”, algo que a classificação brasileira de “literatura infanto-juvenil” não traduz com igual propriedade.
Além da distância temporal, um oceano separa o mundo de Esopo e La Fontaine do nosso sul-americano, de fauna e flora tão distintas. E muito da originalidade desses Contos da selva se deve ao fato de que eles são todos ambientados numa região bem mais familiar aos brasileiros, especialmente aos que vivem no Sul: as províncias de Misiones e Chaco, no norte argentino, na divisa entre Brasil e Paraguai. Quatis, pererecas, flamingos, abelhas, arraias-de-fogo, onças, capivaras, dourados, papagaios e jacarés tomam o lugar dos leões e raposas das fábulas tradicionais e nos facilitam a aproximação à máxima de La Fontaine, a de que a fábula “é uma pintura onde podemos encontrar nosso próprio retrato”.
Contos da selva é o único livro para crianças assinado por Quiroga. É natural que o registro aqui seja outro. A escrita está mais solta, mais amena ou, pode-se dizer, mais bem-humorada em relação à dos contos adultos e com que seu leitor está mais acostumado. O estilo deixa de lado a crueza e a densidade características de um escritor cuja vida foi toda marcada pela tragédia, para emular aquelas narrativas improvisadas que os pais criam para os filhos, cheias de reviravoltas inverossímeis e soluções inconvincentes. Noutras palavras, emulam a singeleza e a liberdade do pensamento infantil. É necessário então que o leitor já crescido dê o devido desconto e observe que Quiroga, longe de pretender menosprezar a inteligência da criança, quer garantir à história um ritmo de aventura que mantenha vivo o interesse do pequeno leitor.
Outro fator distintivo é que nenhuma das tramas converge para uma única “moral da história”, como acontece no modelo de fábula mais ortodoxo, mas várias lições são sugeridas pelo caminho. Tampouco o tom é moralizante, como bem observa Wilson Alves-Bezerra no ótimo ensaio que serve de introdução ao livro, onde ele chama ainda a atenção para os diversos ecos que podem ser percebidos nestas fábulas: La Fontaine, naturalmente, mas também Julio Verne, Herman Melville, Rudyard Kipling e até mesmo Anton Tchekhov, este último em História de dois filhotes de quati e de dois filhotes de homem, talvez a mais interessante das oito narrativas.
A bem cuidada edição da Iluminuras, dentro da divisão infanto-juvenil denominada Livros da Tribo, dispensa luxo e extravagância para apostar no bom gosto. As ilustrações em preto-e-branco de Carlos Clémen evocam as edições dos anos 50-60 do século passado, reforçando o clima retrô também presente na capa vermelha, onde as letras do nome do autor, maiores que as do título, são vazadas para mostrar um fundo que imita a selva. Um detalhe curioso e que é característico das publicações da Iluminuras: o texto da contracapa continua na orelha da capa, e segue depois na orelha da contracapa, com o caminho sinalizado por setas. A primeira orelha tem ainda uma parte destacável para servir de marcador. A tradução, também assinada por Wilson Alves-Bezerra, é correta, mas deixa um pouco a desejar quanto ao aspecto estilístico. Em algumas passagens, fica difícil acreditar que um esteta da palavra como Quiroga tenha afrouxado tanto nesse cuidado.
Acima de tudo, Contos da selva é um livro infantil que privilegia o texto e as histórias. Parece mentira que tenhamos chegado ao ponto de considerar o essencial uma virtude.