As entranhas da realidade

Em "Blumfeld, um solteirão de mais idade", o leitor encontrará algumas das páginas mais extraordinárias do século 20
Franz Kafka, autor de “Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias”
01/08/2018

Um ponto controverso nas discussões sobre literatura atualmente (sim, porque ainda existem…) é se a arte supera a vida. Há ótimos argumentos a favor da noção de que a literatura expressa a quinta-essência da existência, embotada pela rotina monocromática. Por outro lado, com razão, eventualmente, o espectador dos fatos absurdos diários não enxerga nas obras atuais a perícia de dar conta, ou mesmo suplantar criativamente os sucessos da vida. Esse, porém, é um argumento forçosamente circunscrito a uma determinada época e contexto.

Isso porque passou por essa existência, quase incógnito, um tcheco de saúde frágil e sensibilidade superlativa; um artista que, sentindo-se estrangeiro em sua pátria e entre seus contemporâneos, vale dizer mesmo na existência, conseguiu canalizar tal sensação numa obra singular, para dizer o mínimo. Franz Kafka não foi suplantado pela existência.

Se Joyce expandiu indefinidamente as possibilidades narrativas e linguísticas na literatura e Proust dilatou para sempre a consciência humana, que então observa a existência e a si mesma com uma expansão vasta, quase infinita, foi Kafka quem subverteu nossa forma de ver a realidade, de maneira que até o homem mais ordinário vê com clareza e pasmo os alicerces absurdos da vida. Passamos a ser, até o último dos homens, pós-kafkianos.

Se a afirmação parece absurda e hiperbólica, recomenda-se a leitura de Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias. Basta tal volume (que reúne narrativas de diferentes livros de Kafka) para se ter uma ideia de sua filosofia e estética. Isso porque desde os trabalhos iniciais (o conjunto de narrativas curtas Contemplação e o conto O veredicto) já se constata seu toque singular no universo literário, traduzido numa escrita por vezes objetiva e seca, intensificando o pasmo do leitor diante do absurdo que ela enfoca (de novo, para dizer o mínimo).

No início do livro, em Blumfeld…, depara-se com a situação insólita de um recluso cidadão que, certo dia, recebe a visita de duas pequenas bolas que saltitam ritmicamente em seu encalço. Ao leitor moderno comum levará ao desespero a tratativa que o narrador dá ao fato, mais ocupado em descrever as ações comezinhas e banais do personagem nesse contexto que em se embrenhar em considerações sobre a origem das bolas e a lógica da situação. Mas é só o começo: quase na metade do conto, o foco é desviado para o cotidiano de Blumfeld na fábrica onde trabalha e na qual, apesar dos vinte anos de dedicação e da lealdade, é relegado a um canto esquecido. Pior: ali é sub-auxiliado por dois jovens estagiários descompromissados, sempre em seu encalço, espezinhando-o e a outros funcionários. O leitor é posto em liberdade para construir sua interpretação; que o gênio de Kafka compreende a capacidade de indicar inúmeras vias, mantendo-se sólida em sua estrutura fabular, contudo.

Se o leitor carecer de paciência para tanto, fato comum atualmente, pode se contentar com a maestria do autor em conceber o ambiente árido das relações no âmbito do trabalho. É nele que o funcionário, embora bem-sucedido, se vê entregue a uma ocupação desumanizada, desprovida de sentido a ponto de o próprio sistema se esquecer da existência daquela engrenagem individual.

Esse esgarçamento das relações, em Kafka, transcende a relação indivíduo/sistema, abarcando as próprias relações humanas. Este aspecto é quase onipresente em toda ficção kafkiana, mas sujeito a variações: em O vizinho, as relações (in)existentes são tingidas ainda pela impressão de vigilância que um jovem em seu escritório sente por seu concorrente, à distância de uma fina parede; em Os passantes, não há elo possível entre um caminhante e dois outros que, em direção oposta, vêm em corrida a seu encontro sem se deterem — a perseguição apresenta múltiplas possibilidades pela imprecisão do seu contexto e, no fim, um motivo de caráter egoísta justifica a ausência de reação; em O cavaleiro do balde, motivos utilitaristas impedem que dois comerciantes prestem socorro a um desprovido cavaleiro, condenando-o ao frio da noite.

Mas o talento do autor vai além desses fatos próximos do cotidiano. Nessa coletânea, o leitor irá se deparar com fragmentos e contos de teor especulativo, vale dizer espiritual, na releitura de mitos (O silêncio das sereias, Prometeu, Posídon), de clássicos da literatura (A verdade sobre Sancho Pança), em fragmentos alegóricos (Desejo de ser índio, O pião, As árvores) e até em um drama (O guarda da cripta), aliás inédito no Brasil.

Nessa categoria, porém, merecem destaque narrativas que são únicas em toda literatura.

Em Graco, o caçador, o prefeito de uma cidadezinha portuária recebe a visita de uma embarcação e, com ela, de um semivivo caçador, um transeunte entre a vida e a morte, como um Caronte errante. No decorrer de apenas três páginas, Kafka inebria seu leitor, bem como consubstancia sua própria visão sobre o estado de existir:

— Estou aqui, mais do que isso não sei, mais não posso fazer. Meu bote está sem timão, ele anda ao sabor do vento, que sopra nas regiões mais baixas da morte.

Em Chacais e árabes, tem-se uma alegoria poderosa que, em uma das inúmeras chaves de leitura, traduz as relações entre povos e governantes, nas figuras dos chacais submissos, mas traiçoeiros, que buscam num predestinado o vingador que os libertará do jugo imposto pelos seus odiados/amados árabes. Mas basta a estes o lançar um cadáver de um camelo apodrecido para restituir a docilidade dos chacais, não obstante sua refeição se dar sob violentas vergastadas. Em Investigações de um cão tem-se talvez a mais densa e reveladora narrativa sobre o autor, na figura de um cão isolado dos demais, especulativo, que sempre ao ir longe nas investigações, tem vislumbres transcendentais, embora bizarros, dentro do contexto fabular.

A cisão entre a figura do artista e seu público é brilhantemente tratada em Um artista da fome e Josefine, a cantora, ou O povo dos camundongos. Na primeira, um jejuador no nobre exercício de sua função acaba perecendo justamente no auge de seu talento (pois que jejua até a morte); relegado a um canto esquecido de um circo, ao menoscabo do público cujo gosto é transitório, acaba por ser substituído por um tigre vivaz e glutão. Em Josefine…, pelo contrário, a artista logra a admiração de um povo pragmático e pouco musical, mas a cisão parece se dar pela natureza oposta entre ela e ele. Aqui, a mordacidade do autor se faz presente na figura da afetada cantora que pleiteia inclusive o direito a não trabalhar, para burilar sua arte. Aliás, num universo tão sombrio, o cômico e o sarcasmo subsistem não só neste, como em outros exemplares, de forma curiosa é única.

A tradução
Admirável o trabalho de Marcelo Backes: além da organização e de um alentado posfácio em que analisa amplamente as obras kafkianas, desenvolvendo uma tese sobre seus “heróis”, adota na tradução opções corajosas, tais como o uso da segunda pessoa do singular, ou soluções como “cãopanheiro”. Suas escolhas visam mais à fidelidade ao original que à comodidade do leitor, que sempre que possível deve ser tirado de sua zona de conforto.

O livro, enfim, recomenda-se a si mesmo e é ótima porta de entrada para o universo kafkiano, que é, certamente, as entranhas do corpo a que chamamos “realidade”.

Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias
Franz Kafka
Trad.: Marcelo Backes
Civilização Brasileira
336 págs.
Franz Kafka
Nasceu em Praga, em 1883, numa família judia. Educado em colégio alemão, sempre se sentiu um estrangeiro em sua pátria. Sofreu desde a infância a “vigilância” de seu pai pragmático, comerciante bem-sucedido. De saúde frágil, incumbiu o amigo Max Brod de destruir toda sua obra após seu falecimento, que se deu em 1924. Brod não acatou o desejo de Kafka e o mundo teve acesso a uma das obras mais importantes da história da literatura.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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