De uns anos para cá, jornais impressos brasileiros viram reduzir sua quantidade de páginas e de leitores, que migraram, em partes, para telas de computadores e celulares. Mas a crônica sobrevive. Limitada a pequenos espaços nas páginas de cultura — que estão cada vez mais escassas — mesmo assim ela ainda visita os leitores mais saudosos, para acender um novo olhar sobre o cotidiano. E há uma lista grande de cronistas no país que estão na ativa. Antonio Prata é um dos nomes indispensáveis dessa lista.
As 78 crônicas de Trinta e poucos foram publicadas originalmente na Folha de S. Paulo. Reunidas em livro, elas ganham um novo sabor. Permitem que o leitor revisite temas de repercussão nacional, reconheça melhor o estilo do autor. Ali podem ser encontradas das melhores produções de Prata nos últimos anos, com um narrador ao mesmo tempo ranzinza (como em Gênesis, revisto e ampliado) e engraçado.
Há uma seleção cuidadosa na obra. Em partes, ela é temática: preocupada em retratar maravilhas e paranoias do ser adulto, de completar trinta e tantos anos, desde as crises existenciais até as dores nas juntas. Ao mesmo tempo, traz uma infinidade de assuntos. É possível dizer que Trinta e poucos é sobre nascer, crescer, envelhecer. Se o livro anterior de Prata, Nu, de botas, falava da infância, este reúne reflexões bem mais amplas e que perpassam diferentes temas. O livro não informa a data de publicação original das crônicas, mesmo assim dá para enxergar certa ordem cronológica ali. Encontramos discussões sobre família, juventude, casamento, filhos.
Cada passagem parece ter seu próprio ritmo e personalidade. Nas primeiras páginas, já é possível identificar alguns aspectos marcantes da literatura de Antonio Prata (especialmente o senso de humor e a simplicidade da escrita). Ainda assim, as ferramentas de estilo não se esgotam: ao longo das páginas, revelam-se infinitas habilidades do autor, uma variação de olhares sobre o mundo e de formas de contar histórias.
Uma trajetória
Trinta e poucos pode ser entendido como um livro sobre o amadurecimento de uma pessoa, mas também como o desenvolvimento de um escritor. Antonio Prata é um cronista experiente. Entre 2001 e 2008, publicou crônicas na revista Capricho, voltada para o público adolescente. Nessa experiência já havia textos excelentes e um estilo marcante. Uma das coletâneas famosas do autor, Meio intelectual, meio de esquerda, também é formada por textos publicados em periódicos, e alguns deles, como o que dá nome ao livro, são reconhecidos como clássicos de Prata.
Mas Trinta e poucos tem uma cara diferente dessas outras produções. Traz um homem preocupado com a imagem que está formando de si ao longo da vida — seja pela escolha do par de óculos, seja pelas reações aos questionamentos da mulher, pela forma como contempla o crescimento dos filhos. Muitas vezes este homem é inseguro, e tem um olhar refinado, capaz de expor suas fraquezas e paranoias mais mundanas com sensibilidade e precisão. Sozinho, sobre quando o narrador presencia a morte de um homem, é uma das crônicas que melhor expressam essas duas características.
Ele virou pra mim com a testa franzida e a boca entreaberta, como se fosse perguntar as horas ou o itinerário de um ônibus, mas logo se voltou pra frente, olhou aflito a loja de instrumentos musicais do outro lado da rua, então me encarou perplexo, caiu sentado na calçada — e morreu.
Há uma seleção cuidadosa na obra. Em partes, ela é temática: preocupada em retratar maravilhas e paranoias do ser adulto, de completar trinta e tantos anos, desde as crises existenciais até as dores nas juntas. Ao mesmo tempo, traz uma infinidade de assuntos.
Prata completa sete anos como colunista da Folha. É difícil fazer uma seleção a partir da imensa quantia de textos nessa trajetória, sem um recorte muito específico. Por isso, nem tudo ali é alta reflexão sobre a vida adulta. Mas há peças importantes para compor a imagem do cronista, desde a compra de uma jarra de suco até jogos de futebol. Uma crônica já clássica que está no livro é 7×1, publicada depois da derrota que os brasileiros sofreram para os alemães na Copa do Mundo em 2014. Outro belíssimo texto é Charutos e chupetas, sobre poses em retratos de família — e claro, sobre muito mais que isso também.
Semana passada, meu tio Augusto fez sessenta anos e deu um almoço pra família. No fim da tarde, nos juntamos no quintal e tiramos uma foto. Ontem, passei um bom tempo diante da imagem, recebida por e-mail: ao todo somos quarenta e seis pessoas e não há uma única que não esteja sorrindo.
Ter filhos
A paternidade rende alguns dos mais belos textos do livro. Vale destacar Mexeriqueira em flor, em que ele fala do encantamento da filha por uma semente de mexerica, e Carta pro Daniel, sobre um passeio na praça com o caçula. Essas são duas pérolas de Trinta e poucos, que mostram o melhor de Antonio Prata. Exemplos de que situações corriqueiras são, na verdade, extraordinárias e comoventes. A crônica parece ter mesmo essa função: mostrar as grandiosidades dos nossos pequenos assuntos.
Não é uma história extraordinária a que vou te contar. É uma história simples, feita de elementos simples como é feita a maior parte da vida da gente, esses 99% de que a gente desdenha, sempre esperando por acontecimentos extraordinários. Mas acontecimentos extraordinários são raros, como a própria palavra extraordinário já diz, aí a vida passa e a gente não aproveitou. Pois hoje você me fez aproveitar a vida, Daniel, por isso resolvi te escrever, agradecendo.
Homenagem à crônica
A capa de Trinta e poucos, produzida por Alceu Chierosin Nunes, com foto de Tomaz Vello, traz uma imagem instigante. Um peixe embrulhado numa página de jornal (da Folha de S. Paulo, com uma das crônicas publicadas no livro). É uma piada, mas pode ser um puxão de orelha também. Ler os cronistas brasileiros é necessário, para mantê-los nos jornais — nos grandes e nos pequenos, nos informativos, nos literários, nos de bairro, nos artesanais e independentes também. E para mantê-los nas prateleiras das livrarias, físicas ou virtuais.
Em vários trechos em Trinta e poucos, Antonio Prata cita alguns de seus ídolos cronistas. Especialmente Rubem Braga, grande ícone do gênero. Essas menções reunidas na coletânea podem fazer com que o leitor reconheça a obra como uma homenagem a esse estilo tão importante para o Brasil.
Outro dia, num jantar, meu amigo Humberto Werneck me contou de um comentário de Manuel Bandeira a respeito de Rubem Braga: “Braga é sempre bom; quando não tem assunto, então, é ótimo”. Claro, pois nesses textos em que o tema não está dado, é como se acompanhássemos o escritor de pantufas no meio da noite atravessando sua Paris interior, matutando sobre suas angústias, seus alumbramentos.
Em entrevistas, Antonio Prata já mencionou certo incômodo com leitores que leem suas crônicas esperando que elas sejam notícias. Ou seja, pelo simples fato de estarem publicados em um jornal, esses textos teriam — na concepção dessas pessoas — que trazer discussões sobre “temas importantes” do país e do mundo (leiam-se política partidária e economia). Assim, embora o gênero resista nos impressos informativos, ao mesmo tempo ele fica refém dessa falta de compreensão.
Mas a realidade, os fatos, os “grandes temas” e a política estão ali, se os olhos estiverem dispostos a enxergar. Uma surpresa que o espera no ponto de ônibus, a gravidez da mulher, uma pergunta da filha, um par de meias — esses são grandes temas, isso é a realidade, o que nos ajuda a olhar o mundo e entender um pouco sobre nós mesmos e sobre os outros, sobre quem nos governa, sobre o que a gente ignora. Isso é a crônica. E se a vida é triste, Sizenando, com crônica ela fica melhor.