A leitura de A história do senhor Sommer começa antes das palavras. O primeiro impacto se dá ao segurar o livro e sentir sua materialidade. A edição em capa dura, muito bem pensada e cuidada tanto em suas especificidades técnicas quanto no projeto gráfico de autoria de Raul Loureiro, nos dá a dica do que vem adiante. A obra faz parte da coleção Fábula e foi impressa em papel de 120 g/m2, gramatura adequada para impressão das ilustrações de Sempé, que era amigo pessoal do autor, Patrick Süskind, com quem também publicou Um combate, em 2019.
As manchas aguadas de Sempé navegam de forma livre entre as manchas de texto, ora em páginas duplas, ora em simples, ora em forma de vinhetas. As aquarelas possuem traços delicados e ao mesmo tempo trazem uma profundidade de sensações pelo contraste de espaço, de tamanho e de cores. As imagens carregam o mesmo diapasão de sensibilidade do texto verbal.
O narrador é o próprio personagem na idade adulta, que relata histórias do passado, revivendo os tempos de infância para o bem e para o mal. Há, portanto, o ingrediente da passagem do tempo. As lembranças carregam, invariavelmente, a essência do afeto entre dois pontos do passado e do presente: quando se vive o acontecido (infância) e quando tal fato é relatado (memória).
Passagem do tempo
Há inúmeras maneiras de se elucidar a passagem do tempo. Nesta fábula, não se fala do ponteiro do relógio, do cair das folhas, dos dias do calendário, mas do olhar do personagem sobre uma veia daquele que é o ponto de investigação e interrogação da história:
Em março, as pernas eram de uma brancura ofuscante, as veias intumescidas destacavam-se nitidamente, como uma bacia fluvial ramificada e azulada; mas, poucas semanas mais tarde, já haviam adquirido uma coloração de mel; em julho, exibiam uma cor de caramelo semelhante à da camisa e das bermudas; e, no outono, estavam tão bronzeadas pelo sol, pelo vento e pelo clima que ninguém seria capaz de distinguir as veias, tendões ou músculos, pareciam dois ramos nodosos de um velho pinheiro descascado, até que finalmente, em novembro, desapareciam sob o longo capote preto e, longe dos olhares, recobravam sua cor original de queijo branco.
A tradução de Samuel Titan Jr. garante a fluidez da narrativa em primeira pessoa, uma conversa informal na qual o narrador emenda um assunto no outro e, aos poucos, constrói uma intimidade com o leitor, a ponto de reconhecermos no formigamento e na palpitação na nuca as angústias diante de uma lembrança. Nessa cumplicidade, o narrador semeia a curiosidade que perpassa toda a obra: qual será a história do senhor Sommer?
Estando o leitor e o narrador no mesmo pé de curiosidade e ignorância acerca desse “homem estranho, cujo caminho — ou seria melhor dizer: cujo passeio? — cruzou com o meu algumas vezes”, não há hierarquia de conhecimento dos fatos. Descobrimos juntos, na costura das pequenas histórias reveladas, o mapa de um andarilho misterioso, uma figura magra que, de mochila e cajado, caminha sem descanso por toda parte, sem propósito aparente.
Vozes paralelas
A história começa com uma ilustração da silhueta do senhor Sommer, que caminha em sentido oposto ao do narrador/personagem, em ruas paralelas. Já o texto, em descompasso com a imagem, conta da fantasia do menino em poder voar e da mania de subir em árvores, o que o leva a refletir sobre as leis da gravidade que Galileu Galilei havia descoberto 400 anos atrás.
O senhor Sommer é mencionado lá adiante, depois de o autor apresentar o cenário, a vila debaixo, a vila de cima, a escola e algumas peculiaridades do narrador. Assim como os personagens que não se cruzam de imediato, a imagem e o texto também caminham em vozes paralelas distintas, instigando o momento de um encontro.
Os fatos narrados daquela infância são corriqueiros, quase banais, principalmente se vistos há anos de distância: o primeiro amor, aprender a andar de bicicleta, as aulas de piano. Como não lembrar das nossas próprias histórias ao reviver a inocência em admirar na nuca da menina e na covinha entre o lóbulo da orelha e o pescoço uma penugem sobre a pele, que brilhava ao sol e estremecia de leve ao vento? Como não recordar de quando o corpo infantil, que media 1,35 metro, pesava 32 quilos e calçava 32,5, se equilibrava em uma bicicleta e que, aos poucos, ganhava confiança e velocidade para seguir em frente? Como esquecer das aulas de uma professora severa e difícil de contentar, como a senhorita professora de piano, “uma velhinha de cabelos brancos, meio corcunda, enrugada, com um bigodinho negro sobre o lábio superior e absolutamente nenhum peito”?
Outros ingredientes
Conforme caminha a narrativa (e também o andarilho senhor Sommer), novos ingredientes são incorporados: as angústias, as dúvidas, as curiosidades, os medos, as reflexões do personagem. Além disso, são salpicadas provocações sem respostas, que não interferem no entendimento do todo. O leitor mais curioso vai buscar fora do livro as respostas para tais provocações.
Há referências da literatura, que abrem portas para leituras posteriores. Um exemplo é a citação do conto Seis homens se arranjam na vida, dos irmãos Grimm. Esse enriquecimento de escrita dá ao livro um ritmo livre de navegação por vários assuntos, que nem sempre estão relacionados diretamente com a história do senhor Sommer. O desafio convida o leitor a fazer conexões à procura de sentido.
Por falar em sentido, me lembrei de uma frase da tradutora e autora Luci Collin: “O livro impresso, para mim, é uma entidade sonora”. Como notas acomodadas em partitura, os relatos orquestrados pelo narrador criam essa proximidade sonora. Não penso ser um acaso a passagem marcante das aulas de piano com a severa “senhorita” professora, que trazem à tona as injustiças que a dissonância de um fá sustenido, em nota preta, com um pedaço de meleca viscosa e fresca, trazido pelo dedo indicador por cima do bigodinho, após um espirro da tutora. Essa passagem, revestida pelo humor, desencadeia o ponto mais alto de conflito, deixando o instigante senhor Sommer em segundo plano. No entanto, há uma linha invisível que une todos os planos da história. Tudo depende da luz que se alterna entre eles. Cabe a nós, leitores, tecer essa linha imaginária de sentidos.
A sutileza do humor nesta obra é a chave para tratar de assuntos doídos, seja na perspectiva de uma criança ou na de um adulto. Um livro que dispensa, portanto, etiquetas etárias. Tem a liberdade crossover e a sonoridade essencial da poesia e da literatura sem idade.