As convicções de um idealista

Crônicas de "O país que não teve infância" comprovam a aguçada visão política de Antonio Callado
Antonio Callado, autor de “O país que não teve infância”
26/05/2018

Nos últimos anos, o jornalismo político conquistou ainda mais espaço junto aos leitores brasileiros em função dos desdobramentos da crise institucional que o Brasil atravessa. Essa projeção pode impressionar alguns, que, sobretudo agora, imaginam a cobertura de outros momentos da história do país desproporcional. Também, pudera: não são poucas as vezes que os comentaristas políticos profissionais e os palpiteiros das mídias sociais reverberam a seguinte frase de efeito: “é a pior crise da história do Brasil”. O superlativo deveria, ao menos, provocar desconfiança nos jornalistas mais experientes. Mas eis que os tempos, embora interessantes, têm poupado os leitores de observadores com mais tempo de janela. Assim, à medida que se vão nomes como Carlos Heitor Cony (1926–2018) ou Carlos Chagas (1937–2017), faltam nomes à altura para substituí-los. E aqui não se refere a talento ou à prática de escrita, embora isso seja importante, não resta dúvida. O problema é que os cronistas que se pretendem analistas da cena política nacional ainda não envelheceram, como sugeria outro mestre da crônica, Nelson Rodrigues. Sobram análises, falta esperança. E isso fica ainda mais evidente quando se tem em mãos o volume O país que não teve infância, uma seleta de textos do jornalista e escritor Antonio Callado.

A trajetória de Antonio Callado é celebrada graças à sua obra literária. O exemplo máximo disso está em Quarup, romance publicado em 1967 e que reflete as tensões políticas da geração do escritor. De uma só vez, Callado mescla a questão indígena, o engajamento da sociedade civil, bem como o idealismo na luta contra a ditadura. Se, na ficção, essa narrativa parece pertencer a um período determinado na história do Brasil, no tocante às suas crônicas políticas, o que se lê é o desenvolvimento desses temas de modo igualmente intenso e apaixonado. Fosse vivo, Antonio Callado não seria chamado de “isentão”. O autor tem um lado e isso fica claro desde o início de seus textos, conforme organização de Ana Arruda Callado.

Logo na apresentação do livro, a propósito, Ana Arruda faz questão de aludir à crônica que dá origem ao título dessa coletânea — no caso, um texto que cita Eça de Queirós. E, com efeito, para além das características que merecem o louvor desse texto de abertura, é fundamental reconhecer que Antonio Callado é um cronista cuja cultura literária ultrapassa a nota de rodapé. Nesse sentido, torna-se impossível separar as ideias que ele defende em seus textos de uma discussão humanística mais ampla, como se os temas em debate fossem também atemporais, e não suscitados pela cobertura jornalística.

Assim, e também graças à maneira que os textos estão organizados no livro (a obra está dividida em sete segmentos), o leitor fica com a impressão de que o autor não se repete; antes, reelabora a conversa com o público de outra forma, mais fluida, com estilo que não desrespeita o interlocutor e, tratando a audiência como adulta, não se esquiva dos temas mais severos. E aqui é fundamental reparar que, muito embora o país estivesse de saída do regime de exceção ao qual foi colocado em 1964, Antonio Callado dispara sua pena contra os artífices da ditadura e contra o mecanismo da tortura, que, vale a pena citar, é um dos segmentos mais severos e líricos do livro. Ao escrever sobre um torturado, o autor parece desvendar o significado da violência do Estado:

A bomba não passa de um recurso teatral para disfarçar a pura violência da tortura, a violência de um regime tirânico dizendo ao homem inconformado “muda de ideia ou te quebro os ossos”. Quando, depois de preso durante muito tempo, o ex-deputado Marco Antonio Coelho apareceu, quase sinistro, na televisão, feito um fantasma, um espectro, ficamos sabendo que seu sofrimento e sua humilhação tinham levado o governo a descobrir onde se imprimia o jornal Voz Operária, que todo mundo conhece e que eu recebia com certa regularidade pelo correio. Todo mundo sabia que Marco Antonio era comunista e que o jornal comunista era impresso. Aquele espectro que o ministro Armando Falcão apresentou ao público das telenovelas, não era o assassino de Salomão Hayalla. Não era — esperava o ministro Falcão — sequer o ex-deputado Marco Antônio, e sim um homem novo, ou pelo menos recauchutado na vulcanização da tortura. Era um exorcizado, um convertido.

Neste trecho, eis Antonio Callado em sua plena forma. O cronista não se esquiva de abordar um tema complexo, a tortura, e o faz de modo sensível não somente porque se propõe a explicar o que não havia sido dito — o ex-deputado Marco Antonio, uma vez torturado, havia se transformado em um exorcizado, um convertido —, mas também porque articula o mundano em sua crônica — explicação: o autor traz ao texto Salomão Hayalla, personagem da telenovela (O astro) de Janete Clair, para a conversação. É mais do que uma concessão ao leitor desavisado; trata-se de uma imagem poderosa que é capaz de sintetizar os acontecimentos em pauta.

As ideias e suas consequências
O país que não teve infância, conforme dito anteriormente, não esconde a preferência política de Antonio Callado. Assim, seja quando ele escreve sobre “Nossos heróis” — homenageando Lourenço Diaféria ou louvando Augusto Boal e Fernando Gabeira —, seja quando escreve a respeito da “América Latina insolvente” — criticando a aventura da Argentina contra a Inglaterra na disputa pelas Ilhas Falkland ou escrevendo sobre Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez —, suas convicções permanecem à esquerda, de modo que os acontecimentos à sua volta sempre podem ser explicados a partir dessa perspectiva, a um só tempo ideal e correta.

Chama bastante a atenção, a propósito, a referência ao então operário Luiz Inácio Lula da Silva. O texto é do mês de maio de 1980, e a possibilidade de Lula um dia assumir a presidência da República era menos do que remota. Ainda assim, já era nítido o quanto de magnetismo Lula provocava junto à classe mais intelectualizada, e aqui este trecho é muito ilustrativo a respeito:

O pequeno Brasil, delicado e andrógeno, até hoje passa loção no rosto, que ficou irritado com a extirpação das barbas dos alferes. Mas as barbas do metalúrgico vieram para ficar. O Lula não chefia uma conjura de irresponsáveis, e sim, exatamente, a classe operária do país. Quem avisa amigo é. O país está virando homem.

Seria exagero afirmar que Callado errou no diagnóstico porque idealizou um personagem, que, com textos como o que consta acima, ajudou a forjar junto ao público? Ademais, o cronista errou ou acertou ao apontar que o país (também) “esta(va) virando homem” por causa do metalúrgico dono das barbas que “vieram pra ficar”? São duas questões que podem, por exemplo, ser feitas a partir desse texto. É certo que nenhum cronista tem como antecipar o que vai acontecer no futuro. De igual modo, os leitores aprendemos, mais uma vez, que as convicções, ainda que bem-intencionadas, são capazes de turvar a nossa percepção da realidade. As ideias têm suas consequências.

Pelo que se lê em O país que não teve infância, Antonio Callado não fugiria das questões acima. E além: certamente, cerraria fileiras com a posição que estivesse em conformidade com sua visão de mundo pelo que ele acreditava ser a escolha mais justa para o futuro do país. Num instante em que há certo desencanto com a cena política do Brasil, ler as crônicas de Antonio Callado é ter a certeza de que ele foi um dos últimos idealistas do jornalismo político brasileiro.

O país que não teve infância
Antonio Callado
Autêntica
288 págs.
Antonio Callado
Nasceu em Niterói (RJ), em 1917. Como jornalista, escreveu, entre outros, para O Globo, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, IstoÉ, entre outros. É autor de Quarup (1967), até hoje uma das referências da literatura brasileira no século 20. Membro da Academia Brasileira de Letras em 1994, Callado morreu em 1997, dois dias depois de completar 80 anos.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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