Alguns livros são capazes de um grande feito: curar até as piores ressacas literárias (para os não familiarizados com o termo, trata-se daqueles momentos em que ler torna-se uma tarefa impossível). Virgínia mordida, romance de estreia da capixaba Jeovanna Vieira, é uma dessas obras. Não por acaso, sua primeira versão foi finalista do Prêmio Kindle de Literatura em 2021.
A protagonista da narrativa, Virgínia, é uma mulher realizada em quase todos os sentidos: profissionalmente bem-sucedida, ela tem o afeto de uma família aquilombada e de suas dedicadas amigas. Tem nas Beneditas, suas antepassadas, raízes sólidas. Suas principais amizades, Penélope e Dóris, conheceu enquanto trabalhavam na produção da Copa do Mundo de 2014.
Mas a vida amorosa é outra história. No capítulo Solteira fazendo merda, Virgínia elenca as experiências que vieram após o término do seu relacionamento de uma década, uma série de boys lixo, de um procurado pela polícia até um homem casado. É aí que Henrí, um misterioso ator argentino, entra em cena.
O passado do novo namorado de Virgínia começa com as Abuelas de la Plaza de Mayo, organização cujo objetivo é localizar e restituir a identidade de crianças desaparecidas durante a ditadura civil-militar argentina (1976-1983). Com uma família despedaçada, ele torna-se sobrevivente da síndrome de Munchausen por procuração — a mãe incentivava médicos a cortar o corpo do filho, à procura de uma doença inexistente. Removido do status de astro mirim, Henrí acaba sendo um fracasso na atuação. Ele parte da Argentina, deixando o passado. Já Virgínia, vamos lembrar, é uma mulher de raízes.
Quando vão viver juntos, apenas um mês após se conhecerem (após a primeira dança dos dois, ela pensa), é Virgínia quem, sozinha, sustenta a casa. Henrí faz laboratórios para papéis que nunca chegaria a interpretar e dedica-se às rinhas de galo. Refere-se a um rapaz de vinte e poucos anos como “velho” e o tem como um pai substituto.
Virgínia recebe esses fatos com estranheza, mas Henrí se encaixa em seus planos. Acompanhamos, assim, o desenrolar de um relacionamento abusivo — não à toa, ao fim, há um Violenciômetro, indicando que em 2021 (enquanto o romance era escrito) a violência psicológica foi incluída no Código Penal Brasileiro. O tema da violência contra a mulher está em evidência na literatura, como mostra, por exemplo, o imenso sucesso de É assim que acaba, best-seller da estadunidense Colleen Hoover que já vendeu mais de um milhão de exemplares só no Brasil.
Relação abusiva
O foco do enredo de Vieira, entretanto, está em Virgínia — sua tomada de consciência e a percepção de que ela está em uma relação abusiva. Os laços que Virgínia compartilha com a família e com as amigas também se destacam. Para Henrí, elas são cobras. Mas em um dos melhores trechos do romance, a narradora diz: “Cobras permanecem juntas. Já o porco se chafurda na lama sozinho”. Em uma frase, está resumida a dinâmica entre Virgínia, Henrí e aqueles que os rodeiam.
A consciência de Virgínia norteia a linguagem do romance. Este é, aliás, um acerto da narrativa. Encontrar a voz de um narrador em primeira pessoa não é tarefa fácil, e nem sempre dá certo. Mas a voz de Virgínia não só é crível, como também fisga o leitor. Tem sido difícil encontrar um livro em que o enredo, por si, chama mais atenção do que a forma.
Cria-se um sentimento ambíguo. Somos compelidos a devorar as páginas, desvendar essa estória de violência. Por outro lado, há uma certa resistência — é difícil confrontar a crueza da situação de Virgínia. Seja qual for o ritmo escolhido, não há dúvidas quanto a um fato: Jeovanna Vieira sabe narrar.
A autora molda Virgínia crível enquanto personagem e enquanto narradora. Quando confessa, por exemplo, não ter sentido falta das amizades que se afastaram (tão imersa que estava no relacionamento com Henrí), é quando conseguimos vê-la ainda mais humana. Ela é uma vítima que se liberta, uma mulher com coragem de romper o ciclo da violência — e de aceitar a dor do processo. Nunca romantizada, ainda bem.
Há alguns lapsos na narração, mas eles não atrapalham a fluidez da leitura. Diante de temas tão densos, torna-se difícil não querer dar mais explicações do que é preciso. Quando Virgínia vê Henrí com uma nova mulher, pensa: “Talvez a gente tenha assistido aos mesmos filmes da sessão da tarde”. A observação é, decerto, espirituosa. Mas ela poderia caber ao leitor.
Estamos em um romance em que gestos valem tanto quanto palavras. Um discurso da mãe de Virgínia, Beatriz, sobre como o racismo não conseguiu impedir as mulheres de sua família, é potencializado quando é ela quem assume a conta do restaurante, diante da ironia do falido Henrí. No débito, ela ressalta.
Em outro momento, parte do e-mail-carta que Beatriz escreve à filha parece tratar a temática do relacionamento abusivo de forma demasiadamente didática. Mas é nesse e-mail que está uma das mais significativas imagens do livro: a mãe que penteia com cuidado os cabelos da filha — e não quer vê-la sofrer. É nesse afeto que reside o centro do romance. Sobre o trançar dos cabelos, Virgínia diz que “o que era afeto virou militância”.
A construção do texto é notável. Por um lado, Virgínia conjuga frases típicas das redes sociais, como “você não tem um pingo de amor próprio”. Em outros, ela é reflexiva: “quando você olha para o abismo, ele te olha de volta”. Essas nuances mostram quem é essa personagem, uma mulher inteligente, esclarecida, mas também vivaz e descolada — uma millennial.
Há inúmeras imagens poéticas, que revelam uma bela prosa. Para Virgínia, São Paulo tem a cara de um argentino. Uma ponte para a dor pode ser “um galo cacarejando”. Ao fim do relacionamento, o casal dorme abraçado “nas sobras de outro tempo”. Henrí guarda um álbum de fotografias totalmente vazio, um símbolo absoluto de sua falta de raízes.
Na narrativa bíblica, a mulher seria responsável pelo pecado original. Tudo por causa de um fruto mordido. No livro de Jeovanna Vieira, o pecado é do homem. Estamos diante de um livro sobre o amor, mas Henrí não está nesse palco. Ele pertence apenas a Virgínia e suas Beneditas.