As cinzas de Camus

Romance do argelino Kamel Daoud mergulha n’O estrangeiro para, com independência estética e política, oferecer novas interpretações a um crime literário
Ilustração: Kamel Daoud e Albert Camus por Mello
01/06/2022

A literatura do século 21 já tem mais uma grande obra-prima, dessas que serão lidas e comentadas pelos tempos afora. E foi escrita não no coração do Ocidente, mas em uma de suas margens, a Argélia, ex-colônia francesa. O livro, que recebeu o Prêmio Goncourt de primeiro romance, se chama Meursault, contre-enquête, do argelino Kamel Daoud, e chegou ao Brasil em 2016 como O caso Meursault.

Fazia ao menos dez anos que um texto literário não provocava um tal impacto em meu trabalho de ficcionista e de ensaísta. A última vez que aconteceu, creio, foi com a ficção do chileno Roberto Bolaño. Todo escritor, após os anos de formação, mais ou menos a partir dos trinta anos, já constituiu seu corpo de leituras decisivas e recorrentes, que sofrerá baixas e acréscimos, mas sem o turbilhão das descobertas de plena juventude. Depois disso, poucas leituras surpreenderão de fato, até porque o século 20 conseguiu esgotar quase todas as possibilidades técnicas e temáticas, seja na poesia, seja na narrativa, no drama, na (auto)biografia, etc.

Mas deve-se sempre aguardar que algo surpreenda, e até mesmo choque, numa curva qualquer da existência. Imagine então a leitora e o leitor, caso ainda não se tenham deparado com o exemplo a que me refiro, um escrito que combinasse o estilo de Kafka e Borges, aliados ao melhor ensaísmo de Edward Saïd e ao pensamento de Jacques Derrida…

O romance é, em princípio, uma leitura a contrapelo do celebérrimo L’étranger, de Albert Camus, traduzido em nosso vernáculo como O estrangeiro — que também poderia ser O estranho, e até mesmo O forasteiro. Em inglês, por exemplo, há duas traduções: The stranger e The outsider.

A narrativa de Daoud não é mais um desses exercícios pós-modernos em que um escritor menos conhecido se projeta imitando a obra de outro consagrado. Tal como o fez Julian Barnes, relendo em O papagaio de Flaubert, igualmente a contrapelo, o delicado Un coeur simple, de Gustave Flaubert (Um coração singelo, na tradução de Luís de Lima). A escrita potente de Daoud torna quase impossível, doravante, ler um livro sem remeter ao outro. L’étranger e Meursault, contre-enquête se converteram num díptico, como assinalou a crítica Macha Séry, no jornal Le Monde.

Escrito e publicado primeiramente na Argélia, o livro de Daoud tem em seu bojo uma imagem particularmente irônica, a do sol. Meursault, personagem de Camus, teria assassinado o árabe devido à insolação provocada pelo calor das catorze horas… Daoud, agora com quarenta e sete anos de idade, parece ter passado mais da metade destes ruminando uma emulação estética de L’étranger.

Na verdade, como enfatiza Haroun, o narrador do livro, duplo do escritor, foram necessários setenta anos para que alguém desse uma resposta à altura desse colosso da literatura universal, considerado por um júri dinamarquês como um dos romances mais importantes de todos os tempos; é também o livro de bolso que mais vendeu até hoje na França.

O livro de Camus se abre com uma das frases mais conhecidas da literatura ocidental: “Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas” [Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei]. Essa abertura, um tanto lacônica e confusa, por causa da indefinição temporal, nos apresenta de chofre o personagem, que também é o narrador de primeira pessoa, cujo sobrenome é Meursault. É notório também que ele será julgado por um crime praticado em praia da Argélia, numa época em que a França e suas colônias ainda conheciam a pena capital — a condenação à guilhotina.

Lançado em 1942, durante a segunda guerra mundial, portanto, a história narrada em O estrangeiro é contemporânea aos fatos da época de sua publicação. Muito resumidamente, diga-se que, durante o julgamento, Meursault será acusado na verdade por dois “crimes”: o de ter assassinado um árabe por motivo fútil e o de sua indiferença para com a morte da própria mãe. No entanto, pelo que se depreende da fala do procurador, o crime maior acaba por ser o segundo: ter deixado a mãe num asilo e não ter chorado durante o velório e o enterro.

As palavras há pouco citadas como abertura do livro confirmam a frieza e a indiferença supostas do personagem-narrador, numa espécie de letargia sublinhada, várias vezes reiteradas ao longo da narrativa. Sua vida pacata somente se transforma quando ele assassina o árabe, o qual fazia parte de um grupo que ameaçava seu “amigo” Raymond, um proxeneta — que, na verdade, ele pouco o conhecia. Meursault é preso, julgado e condenado, sem que se possa ter certeza no final se ele foi realmente guilhotinado, visto que é o narrador de sua própria história.

Investigação literária
Kamel Daoud, setenta anos depois desse crime literário, inventa um personagem chamado Haroun, que seria o irmão do árabe assassinado e cuja história foi completamente omitida pela narrativa de Camus, centrada apenas no protagonista Meursault. Não bastasse a omissão, o morto também permanecerá para sempre anônimo, sem nome ou sobrenome que permitam identificá-lo. A primeira frase do romance de Daoud é uma paródia explícita da abertura do de Camus: “Hoje, mamãe ainda está viva” [Aujourdhui, M’ma est encore vivante].

Haroun, personagem sem sobrenome, acusará então Meursault e seu autor, Camus, de um duplo assassinato, mas em termos diferentes: a morte do irmão “árabe” (e grande parte das questões se desdobrará em torno dessa etnia) e a supressão de seu nome. Em O estrangeiro, o outro assassinado aparece numa dupla de árabes (les Arabes), porém estará sozinho no momento do crime.

A tradução portuguesa, de Inês Pedrosa, dá conta de forma mais adequada do título original: Meursault, contra-investigação (Teodolito). Ou seja, é como se Haroun reabrisse o processo do assassinato do irmão para lhe fazer justiça, dando-lhe nome (Moussa) e existência. A composição do livro Meursault, contre-enquête seria também de narrativa em primeira pessoa, mas na verdade se revela um falso diálogo, travado com um interlocutor silencioso. Tal como em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, o narrador conversa com um estrangeiro, que permanecerá mudo até o final, apenas reagindo pontualmente à narrativa. Mas essa estrutura é uma simulação de outra ficção de Camus, A queda, em que um personagem, num bar de Amsterdam, conversa com outro sobre sua vida pregressa, sendo que só sabemos da existência do interlocutor por suas reações, igualmente registradas pelo narrador.

Depreende-se aos poucos que Haroun tem vários encontros com esse jovem forasteiro, o qual é um investigador, mais exatamente um estudante universitário, um aprendiz de scholar, cujo tema de pesquisa é a história “real” que dá corpo ao livro de Camus. Mas, como tudo no livro é duplo, haverá um segundo investigador, ou investigadora, que tinha aparecido antes desse interlocutor mudo. Trata-se de Meriem, amante extemporânea de Haroun, que lhe ensinou a falar e a ler em francês, permitindo-lhe conhecer enfim a obra de seu nobre conterrâneo Albert Camus.

Temos então um velho alcoólatra e falastrão, que destila suas mágoas no vinho, o qual o ajuda a destravar a língua, pois in vino veritas, segundo o adágio latino. E o que ele tem para contar é estarrecedor. A pergunta que se coloca diversas vezes é como a crítica jornalística e a universitária, bem como a legião de leitores, raras vezes se deram conta da violência colonial que habita o texto de Camus.

Tal como o escritor Camus, o narrador de O estrangeiro é um autêntico pied-noir, ou seja, um colonizador, cujas origens estavam na “metrópole”. Ele é um francês que convive com os nativos colonizados, árabes e não árabes (nunca se deve esquecer que nem todo magrebino é árabe, pois no norte da África existem outras etnias, como os berberes). A fala de Meursault é a do colono, em princípio e por princípio “superior” à do colonizado. O esquecimento do nome do outro nada tem de fortuito, é um efeito poderoso da violência colonial. O livro de Daoud se torna então uma contrainvestigação do processo colonial, no período da Argélia colonizada, durante a guerra, no pós-guerra, mas sobretudo “hoje”, no plano da enunciação narrativa.

Independência estética
Meursault, contre-enquête é uma resposta literária e amplamente estética não só porque dialoga com um texto anterior, mas também porque retoma cada um de seus componentes, preenchendo suas lacunas e dando voz e vida a quem não as tem na literatura oficial, o clássico dos clássicos. Curiosamente, em determinada altura, Haroun rebatiza o livro L’étranger como L’autre, um título que caberia como luva para sua própria narrativa. O Outro do Estrangeiro, tal é a contranarrativa que nos propõe Daoud nessa altura do século 21, como autêntico reescritor. Ocorre uma efetiva desconstrução e não uma mera destruição da narrativa canônica, na medida em que o livro é uma belíssima homenagem a Camus e a sua obra-prima.

Nesse caso, como no de O papagaio de Flaubert, de Barnes, a dúvida seria a seguinte: se um dia, por causa de uma grande catástrofe, as narrativas de referência desaparecerem, quer dizer, Un coeur simples, de Flaubert, e L’étranger, de Camus, será que seus desdobramentos, as duas obras do autor inglês e a do argelino, terão a mesma força?

Como leitor admirativo das duas contraficções, afirmaria que sim. Ambas dependeram dos modelos para existir, mas os expropriaram de tal modo que eles se encontram inteiramente nos textos de chegada, porém outrados, transformados em uma narrativa estética e politicamente independente (enfatizo o adjetivo).

O golpe de gênio de Daoud é arrombar a ficção de Camus pela porta da frente, saqueando tudo o que encontra, sem contudo cometer o gesto grotesco de imitar o estilo do autor. Ao contrário, em vez da límpida prosa camusiana, calculadamente precisa, tem-se uma linguagem exuberante, de propósito excessiva, ébria em diversos trechos. Não segue desse modo um verdadeiro clichê da ficção contemporânea, o imperativo de ser despojada. Daoud não se rendeu ao engodo do pastiche, que fez a fortuna da literatura dita pós-modernista, hoje morta e enterrada. Ele não inventou, mas ajudou a formatar em definitivo um novo gênero, ou antes, como prefiro, um dispositivo, assinalado desde o título: a contrainvestigação ou a contranarrativa, aquela que investe contra o texto de outro escritor, para mostrar suas falhas e contradições, mas sem niilismo.

É a questão da independência estética e política que está no coração da narrativa de Daoud. Intentando um processo de descolonização, assim nomeado na ficção de Meursault, contre-enquête, um escritor “periférico” resolve assumir a tarefa de mexer num texto sagrado, para fazê-lo falar aquilo que silenciou, o nome e a história do outro. É o que nomeio como literatura pensante, aquela que leva a pensar o impensado ou mesmo o impensável. Rios de tinta louvando o “caso Meursault” como um drama existencial de consciência, uma ficção do absurdo. Quase nenhuma linha para apontar que o verdadeiro absurdo era a eliminação da história do outro, o colonizado, um próximo mas infinitamente distante do status social do colonizador. Chamo também de alterficção a ficção do outro, pelo outro, para o outro, de preferência falando com sua própria voz, como é o caso de Haroun-Moussa.

Verdadeiro crime
A escrita de Daoud é primorosa, nem superior, nem inferior à de Camus, apenas dessemelhante na mais estrita similaridade temática. Isso prova que uma narrativa não precisa ser feita de qualquer modo por ser um instrumento de denúncia; o refinamento literário apenas acentua os aspectos políticos e éticos do livro.

O mais interessante é que essa ficção detém um humor bastante fino, por vezes no limite do deboche. É a fala de um delirante, que emula o livro de seu duplo franco-argelino, desafiando-o, sem esquecer nenhum detalhe. Leio num texto da internet que há pequenas diferenças entre a edição argelina e a francesa; a principal seria que Meursault recebe um prenome na primeira, enquanto na última vigora o sobrenome apenas. Ele se chama Albert, e é na confusão terrível entre o narrador-personagem-assassino Meursault e o pai-escritor Albert Camus que está uma das chaves de leitura do livro de Daoud.

Inúmeras vezes, em seu “diálogo” com o jovem pesquisador europeu, intencionalmente sem nome, Haroun qualifica o escritor-narrador de L’étranger como “ton héros”, o qual tanto pode ser Meursault (e o é na maior parte do tempo) quanto Camus (na medida em que o interlocutor é um especialista da obra deste, tendo-o portanto como herói intelectual). Como o próprio Daoud declarou em entrevista, a narrativa se elabora justamente como forma de satirizar os vários pesquisadores estrangeiros que vão à Argélia, seguindo os passos de Albert Camus e ignorando tudo o mais.

A contrainvestigação ficcional mimetiza a pesquisa universitária, mas vai além desta, porque se ergue como obra de detetive, expondo não só as provas mas também o verdadeiro crime, aquele que quase nenhum scholar percebeu (a exceção seria, não por acaso, o palestino Edward Saïd, num ensaio intitulado Representing the colonized: Anthropology’s interlocutors): a redução do outro ao anonimato, uma violência que vai além da morte, já que o nome é tudo o que resta depois que partimos. Se as enquetes universitárias em sua maioria foram até hoje favoráveis à versão de Meursault como narrativa do absurdo, a contraenquete de Haroun dessacraliza a obra e seus investigadores. Todavia, é preciso notar que a investigação de Haroun sobre a morte de seu irmão foi estimulada pela também investigadora Meriem, com quem teve um breve caso. Foi a partir disso que ele tentou se reapropriar da história do país e de sua pobre família.

É uma história cheia de fantasmas, em que a língua francesa, tal como a casa dos colonos após a independência, é um bem vacante, um imóvel vazio, uma residência mal-assombrada, para quem ouse ocupar. E Haroun nela se instala, após aprendê-la com a estrangeira Meriem, na qualidade de irmão do morto, do próprio morto e também como assassino em segundo grau. Ora ele é um revenant, uma alma do outro mundo, ora ele é o próprio Moussa redivivo, ora um duplo de Meursault-Camus, sem ser nenhum desses isoladamente. Daí sua confusão mental: é impossível escolher de modo simples um dos lados, embora pareça que o “contra” se dirija apenas a Camus e a seu ilustre protagonista.

Mas não fica pedra sobre pedra, nem da língua francesa ou da árabe, as duas que ele “domina”, nem do nacionalismo tacanho de franceses ou argelinos. É livro híbrido, muito argelino e muito francês ao mesmo tempo, entre lá e cá, em pleno mal-estar do desajuste na civilização. É obra de um intelectual pós-iluminista, nem tanto ao sul (Argélia, África), nem tanto ao norte (França, Europa), entre os dois e voluntariamente em lugar nenhum. Uma ficção escrita originalmente em francês, e não em árabe, o que torna tudo mais complexo.

Pós-pós-colonial
O método de trabalho de Haroun é anunciado logo nas primeiras páginas (tradução minha):

Vou logo dizendo: o segundo morto, aquele que foi assassinado, é meu irmão. Não sobrou nada dele. Só eu fiquei para falar em seu lugar, sentado neste bar, aguardando condolências, que ninguém jamais me apresentará. Pode rir, essa é mais ou menos minha missão: revender um silêncio de bastidores, enquanto o teatro se esvazia. Foi, aliás, por esse motivo que aprendi a falar e a escrever nessa língua; para falar no lugar de um morto, de certo modo continuando suas frases. O assassino se tornou célebre, e sua história é bem escrita demais, para que me dê vontade de imitá-lo. Era a língua dele. Razão pela qual vou fazer o que se fez neste país depois da independência: pegar uma por uma as pedras das antigas casas e com elas fazer uma casa minha, uma língua minha. As palavras do assassino e suas expressões são meu imóvel vazio. O país, aliás, está repleto de palavras que não pertencem mais a ninguém, e que se percebem nos letreiros das lojas antigas, nos livros amarelecidos, nos rostos, ou transformadas pelo estranho linguajar [créole] que a descolonização fabrica.

O grande salto da narrativa de Daoud é ir além da denúncia pós-colonial, pois o romance promove um segundo processo: o da própria Argélia contemporânea, imersa numa atmosfera pouco democrática, com forte tendência religiosa, onde beber vinho é malvisto, entre outras interdições sutis ou explícitas. Por esse motivo, o livro se coloca numa perspectiva “pós-pós-colonial”.

O pós-colonialismo, como se sabe, é um tipo de estudo universitário, desenvolvido a partir da segunda metade do século 20, sobretudo nos países de cultura anglo-saxã, mas com grande influência nas comunidades acadêmicas de nações de outras expressões linguísticas. Não se trata de uma abordagem meramente cronológica, como o título levaria a supor, ou seja, a pesquisa acerca do que aconteceu nas nações imediatamente após a independência em relação aos colonizadores europeus.

Desenvolvidos por nomes como o martinicano Franz Fanon, o palestino Edward Saïd, os indianos Gayatri Spivak e Homi Bhabha, o jamaicano Stuart Hall, entre outros, os estudos pós-coloniais ambicionam criticar tudo o que, na contemporaneidade, guarda uma visão colonial e neocolonial quanto aos países não ocidentais. A própria divisão entre Ocidente e Oriente, ou entre Primeiro e Terceiro Mundo, é atacada como fonte de antigos e novos preconceitos em relação a culturas diferenciais. Contudo, uma das muitas críticas que se faz ao próprio pós-colonial é certo apego à noção de identidade cultural, como também muitas vezes o fato de não levar em consideração que várias nações não hegemônicas, anteriormente vítimas da violência colonial, hoje infringem os direitos humanos, submetendo mulheres, gays e etnias estrangeiras a todo tipo de sevícia. Apesar disso, é inegável a contribuição desses pensadores pós-coloniais para uma desarticulação das polaridades, que têm orientado as relações interculturais desde o início das invasões por parte dos europeus.

Em Meursault, contre-enquête, a crítica cabal da visão colonialista do texto de Camus não se reduz a uma vitimização (coisa que Haroun explicitamente recusa), nem muito menos a uma idolatria da Argélia independente. Longe disso, o olhar do ateu Haroun para uma nação que se converteu progressivamente a um tipo de fundamentalismo islâmico cria uma forte cumplicidade com o “inimigo” Meursault, também ateu. E essa identificação vai se acentuar depois que ele declara ter cometido o assassinato de um “roumi”, um francês, antigo proprietário da casa onde Haroun morava, numa extensão, com sua mãe. Ele então será interrogado por um oficial do Exército de Libertação, pelo fato de ter cometido um crime após a independência. Se tivesse assassinado o francês antes, isso seria considerado um ato heroico, mas como o ato ocorreu depois da independência, tornou-se um crime comum, passível de punição legal…

A diferença do que estou chamando, não sem ironia, de “pós-pós-colonial” não está em romper com o movimento que o precede, o “pós-colonial”. Antes de mais nada, porque não se trata de um novo movimento, mas sim da possibilidade de pensar a relação colonizador/ex-colonizado de maneira complexa, com uma crítica radical de ambos. No estágio atual da humanidade, cabe indagar o que foi feito de nossas democracias.

Por que países não hegemônicos como Brasil, Índia e Argélia têm fracassado tanto em implantar democracias efetivas? Em nosso caso, ocorreu um inacreditável golpe de estado em pleno século 21, solapando a liberdade do voto. A mesma questão se coloca do lado das nações economicamente mais desenvolvidas: por que uma democracia tão antiga quanto a dos Estados Unidos elegeu, por duas vezes, presidentes que perderam no voto popular e ganharam nas eleições indiretas, por meio dos “superdelegados”, colocando no poder os piores representantes da direita populista, Bush Filho e Donald Trump? Por que também países europeus como França, Inglaterra e Alemanha fracassaram em seus modelos de convivência com o imigrante estrangeiro, sem conseguir implantar uma política plenamente justa e coerente com os direitos humanos?

Em resumo, nenhum país hoje escapa à necessidade de uma revisão total de suas estruturas de funcionamento político e econômico, uma vez que é a sobrevivência da vida como um todo que se vê ameaçada pelos novos fascismos. Não dá mais para explicar os problemas das nações menos desenvolvidas apenas em função da história colonial, pois cabe a cada nação reinventar sua própria história, não contra todas as outras, mas num movimento amplo de solidariedade, algo praticamente utópico no estágio atual de transformação do humano.

O romance de Daoud não se coloca, portanto, de maneira simplista nem do lado do colonizador, nem do antigo colonizado, sem todavia negar a condição de vítima deste último, ao contrário, apontando esse lugar trágico e os paradoxos que daí decorrem. O principal deles é muitas vezes se ter como língua oficial (no caso do Brasil) ou como segunda língua de comunicação (no caso da Argélia, do Marrocos e da Tunísia) a monolíngua do outro. Daí o hibridismo dessa escrita, publicada em francês e no idioma oficial da Argélia e, contendo palavras das duas línguas, em ambas as versões. Com seu cortejo de espectros e assombrações de todo tipo, o livro parece também muito inspirado pelas ideias de Derrida, outro intelectual franco-argelino.

Em cada uma das inúmeras ex-colônias europeias seria importante ter hoje um ou uma ficcionista que reescrevesse a história de seu país, na perspectiva do processo de descolonização histórica, sem autocomiseração, nem complacência com a violência colonial. Vale assinalar que a editora francesa desse humorístico e trágico relato é Actes Sud, situada em Arles, cidade da França, onde o vigor artístico de Van Gogh desabrochou de vez, no sul com que ele tanto sonhou, mas que também foi seu grande pesadelo. A proprietária da editora, Françoise Nyssen, se tornou ministra da cultura francesa, no governo de Emmanuel Macron.

Sinalizo, por fim, que toda grande ficção pode ser interpretada em mais de um sentido. Desse modo, é igualmente legítimo ler O estrangeiro como uma autêntica crônica da vida colonial, cuja mentalidade Meursault encarna à perfeição. Sendo assim, a ficção de Camus poderia ser vista como crítica e não como simples reprodução da ideologia colonial. Essa interpretação nem de longe invalida a arte de Daoud, que utiliza o texto camusiano como pré-texto para desconstruir o edifício (neo)colonial, onde quer que ele ressurja. E exatamente por isso também Meursault, contre-enquête se presta a múltiplas leituras, umas mais redutoras, outras decerto mais dadivosas e amplificadoras do que o livro tem de melhor: o dom de tocar esteticamente seus leitores e fazê-los pensar, completando o circuito da alterficção.

Deixo com a palavra o próprio autor Kamel Daoud, numa crônica intitulada Rapatrier un jour les cendres de Camus [Repatriar um dia as cinzas de Camus], que sintetiza à perfeição sua perspectiva mais além do pós-colonial, porém sem condescendência alguma para com os imperialismos, antigos ou novos:

Mas dia virá em que, para continuar a viver, este país buscará a vida mais longe, mais alto, mais fundo do que sua guerra. Será preciso então que proclamemos nossas as antigas histórias, todas elas, e nos enriqueçamos, apropriando-nos também de Camus, da história de Roma, da cristandade da Espanha, dos “Árabes” e dos outros que vieram, viram ou ficaram. A língua francesa é um patrimônio, como as arquiteturas dos colonos, seus rastros e atos, crimes ou pântanos secos, genocídios e praças públicas.

O caso Meursault
Kamel Daoud
Trad.: Bernardo Ajzenberg
Biblioteca Azul
168 págs.
Kamel Daoud
Nasceu na Argélia, em 1970. Foi o único de sua família a ter acesso à educação formal e trabalhou por muito tempo como jornalista. É autor também do romance Zabor (inédito no Brasil).
Evando Nascimento

É escritor, ensaísta e professor universitário. Autor, entre outros, de Cantos do mundo (Record), Cantos profanos (Biblioteca Azul) e A desordem das inscrições (7Letras).

Rascunho