As atmosferas e dores de Duras

Seja em romances intimistas ou em testemunhos históricos, a protagonista da prosa de Marguerite Duras é sempre ela mesma
Ilustração: Marguerite Duras por Oliver Quinto
01/11/2023

Existe uma certa qualidade encantatória na prosa de Marguerite Duras: as palavras se repetem de forma insólita, sempre colocadas em posições estranhas onde seu significado é instabilizado, negado, multiplicado, resistindo a qualquer análise lógica, dificultando o trabalho do resenhista, mas criando uma atmosfera inesquecível.

Sua obra não chama atenção por seus personagens bem-desenvolvidos: como está sempre fundamentalmente falando sobre si mesma, seus personagens mais memoráveis são seus altereg0s, como a esposa de A dor (1985) ou a menina de O amante (1984). Seus romances também não são famosos por seus enredos elaborados: ou são inexistentes — o que efetivamente acontece em Olhos azuis, cabelos pretos (1986)? — ou, quando muito, podem ser resumidos em duas linhas, como em O arrebatamento de Lol V. Stein (1964).

Pois o que nos atrai continuamente à obra de Duras, em um movimento que é mais hipnose ou atração do que um simples “gosto literário”, é justamente sua capacidade de criar atmosferas. Já dizia o ditado: “As pessoas podem até esquecer o conteúdo da sua fala, mas vão sempre lembrar como você as fez sentir”. Qualquer leitora aleatória esquecerá o enredo de mil romances antes de esquecer o desespero cru e sem limites que sentiu ao ler A dor.

Durass, não Durrá
Marguerite Duras nasceu na Indochina Francesa, atual Vietnã, em 1914, filha de dois professores. Sua obra-prima O amante ficcionaliza eventos de sua infância. Aos 18 anos, vai cursar ensino superior na França, onde mora pelo resto da vida. Forma-se em Direito, trabalha numa repartição pública, se filia ao Partido Comunista, se casa e, quando Paris é ocupada pelos alemães, entra para a Resistência. Sua também obra-prima A dor retrata essa época.

Em 1943, ao começar a escrever ficção, Marguerite decide não usar nem o sobrenome de seu pai, Donnadieu, nem de seu marido, Antelme, em uma recusa de ser nomeada por, para e em função de homens. Ao invés disso, assinará com o nome da vila onde seu pai nascera e morrera, Duras. É como se quisesse honrar a memória do pai e da região de onde vinha, ao mesmo tempo em que afirmava sua independência de tais amarras. Gestos paradoxais como esse definem toda sua obra. Marguerite também fazia questão de ressaltar que seu nome se dizia não “Durrá”, uma pronúncia à la parisiense que considerava afetada, mas sim “Durass”, com um “s” final sibilante, como a cidade era chamada no sotaque da região. Marguerite, dominadora, fazia questão de determinar ela mesma não apenas seu novo nome, mas até como seria pronunciado.

Na década de 1940, Duras ainda escrevia uma prosa mais realista e convencional, apesar das insistências de seu editor na Gallimard, Raymond Queneau, autor de Zazie no metrô, para que abandonasse as influências estadunidenses e se soltasse no francês. Finalmente, ao longo da década de 1950, Duras vai encontrando sua própria voz e começa a produzir as obras-primas pelas quais é conhecida.

Os ciclos de Duras
Marguerite Duras escrevia, se não aos borbotões, certamente em ciclos. Tratava qualquer assunto, trauma, obsessão ao longo de vários livros, filmes, roteiros, peças, até esgotá-lo ou ser esgotada. Sua obra é geralmente dividida em três ciclos: indochinês, indiano e atlântico.

Do ciclo indochinês, faz parte não só sua obra mais famosa, o já citado O amante (1984), pelo qual ganhou o Prêmio Goncourt, mas também um romance anterior, Uma barragem contra o Pacífico (1950), e outro posterior, O amante da China do norte (1991), onde Duras basicamente conta e reconta a mesma história de sua infância na Indochina, aproveitando para se corrigir, se desmentir e, basicamente, borrar todas as linhas possíveis que separam sua ficção da sua biografia. Por exemplo, o amante asiático é feio e vietnamita em uma obra, charmoso e chinês nas outras.

Alguns personagens, temas e, principalmente, a atmosfera de O arrebatamento de Lol V. Stein (1964) seguem aparecendo em O vice-cônsul (1965) até serem finalmente resolvidos, ou, quiçá, exorcizados em India Song (1973), formando assim o ciclo indiano. Não por acaso, ambos os ciclos têm como pano de fundo o colonialismo europeu na Ásia.

Por fim, o ciclo atlântico começa com O homem atlântico (daí o nome), continua em A doença da morte, ambos de 1982, e termina com sua obra final, Yann Andrea Steiner (1993). O clímax desse ciclo talvez seja justamente Olhos azuis, cabelos pretos (1986).

Amor e ódio
Olhos azuis, cabelos pretos é dedicado a Yann Andrea, que também dá nome ao último romance de Duras. Em realidade, ele se chamava Yann Lemeé, mas foi rebatizado por Duras, como ela mesma havia mudado o próprio nome. Ele era quase quarenta anos mais novo e faleceu recentemente, em 2014, aos 61. É impossível descrever a relação de ambos em termos convencionais e é justamente essa indefinição que marca, desestabiliza e complexifica as obras desse último ciclo, especialmente Olhos azuis, cabelos pretos. Yann era homossexual e vivia relações passionais com outros homens — mas morava com Duras, era seu enfermeiro, secretário e ajudante, e fazia dela a prioridade absoluta de sua vida. Duras o sustentava, o amava e o desejava, sofrendo por isso de ataques de ciúmes violentos, onde gritava xingamentos cada vez mais homofóbicos. Yann, jovem e esquentado, xingava de volta. Duras sempre teve uma relação de amor e ódio com a homossexualidade, e seus sentimentos por Yann tornaram essa relação ainda mais passional e ambivalente. Algumas vezes, ela considerava a homossexualidade uma vantagem; em outras, desprezava homens que não queriam ter filhos e os considerava “heteros confusos”. Mais do que tudo, de acordo com sua biógrafa Laure Adler, Duras se ressentia de Yann amá-la tanto mas não sexualmente. Às vezes, do jeito deles, transavam. O fato é que, depois de se encontrarem, nunca mais desgrudaram. Pelos últimos dezesseis anos de sua vida, Duras foi amada, cuidada e protegida por Yann. O texto A puta da costa normanda, parte do volume Olhos azuis, cabelos pretos publicado pela Relicário, compartilha um pouco do turbilhão que foi esse relacionamento.

O romance mal tem um enredo: em um hotel da costa normanda, um homem contrata a mulher para dormir com ele. Somente dormir, mais nada. Como uma prostituta, ela aceita dinheiro em troca de intimidade física. O homem, verdadeira Xerazade moderna, preenche as noites contando do seu desejo por um jovem estrangeiro que foi embora e que se parece fisicamente com a mulher. Já a mulher, que funciona como duplo desse jovem, parece sexualmente interessada no homem, mas incapaz de despertar seu desejo, encontra outro amante na cidade: sempre que chega para passar a noite, está vindo de ter gozado com outro. Nesse triângulo amoroso onde uma das partes, o jovem estrangeiro, está ausente, desenvolve-se a ação de Olhos azuis, cabelos pretos. Amor e sexo sempre se desencontram, nunca se comunicam. Na obra de Duras, o amor é a “doença da morte”.

Palavras como “homossexualidade” e “orientação sexual” nunca são mencionadas, mas não resta dúvida que ambos estão em um relacionamento sexual. Mas em quais termos? Sob certos aspectos, a relação entre ambos pode ser considerada aberta ou não-monogâmica, assexual ou BDSM? Afinal, o que define um relacionamento? A narrativa elíptica e impressionista de Duras transfere sua fluidez e instabilidade a todos os fenômenos que aborda, de relacionamentos monogâmicos a orientação sexual, de identidade de gênero a dominação e submissão, de prostituição a consentimento. Não há certezas, sobram perguntas. Como muitos clássicos, Olhos azuis, cabelos pretos é mais rico hoje do que quando foi escrito, pois se insere em discussões políticas fundamentais do presente que Duras mal poderia ter antecipado. Conhecendo sua biografia, porém, é impossível ler esse romance sem ver nele uma tentativa de articular ficcionalmente sua relação indefinível com Yann.

A dor
Não por acaso, as duas maiores obras-primas de Duras são justamente aquelas não onde ela conseguiu sair de si — Duras nunca nem tentou — mas onde sua vida exemplificou, ou deu testemunho, de situações sociopolíticas maiores que os meros fatos de sua biografia. O amante é uma obra-prima porque une a história do amante chinês com o pano de fundo da opressão colonial, da pobreza, do racismo. Sem isso, seria uma obra menor — aliás, como Olhos azuis, cabelos pretos.

A dor, talvez a maior das obras-primas de Duras, não pertence a nenhum ciclo. Durante a ocupação da França pelos nazistas, ela e seu marido, Robert Antelme, fizeram parte da Resistência. Em um dado momento, Robert é preso e enviado para o campo de concentração de Dachau. Ao longo de vários meses, Duras tenta descobrir onde ele está, só consegue localizá-lo depois de terminada a Segunda Guerra Mundial e ele volta para casa quase morto — um metro e oitenta e cinco, trinta e cinco quilos. Na edição brasileira, a noveleta, de menos de 60 páginas, é acompanhada de outras seis histórias passadas na mesma época, em diferentes graus de ficcionalidade, das mais testemunhais às mais ficcionais. As duas mais interessantes são as primeiras, Senhor X. chamado aqui de Pierre Rabier e Alberto do Capitales. Na segunda, Thérèse, membro de uma célula da resistência, tortura um colaboracionista. Para não deixar dúvidas, uma nota de Duras esclarece: “Thérèse sou eu”.

Duras publica A dor em 1985, alegando ter sido um texto que encontrou em um caderno da época da guerra, registrado em sua caligrafia, mas que não se lembrava de ter escrito. De fato, o texto está no estilo realista que Duras ainda usava na década de 1940 e parece intenso, urgente demais para ter sido escrito friamente quarenta anos depois dos fatos narrados. Por outro, já manifesta várias questões e preocupações do momento histórico de sua publicação, a década de 1980, que Duras não teria como antecipar durante a guerra. Além disso, como bem ilustram as três versões literárias de seu amante chinês-ou-vietnamita, Duras era famosamente ambígua em relação aos fatos concretos da sua autobiografia. Vários de seus antigos colegas de Resistência apontaram erros factuais primários e a acusaram de vaidade excessiva e autopromoção descarada: “Essa aí nunca torturou ninguém”, etc. Durante o julgamento do nazista Klaus Barbie, em 1987, Duras chegou a ser convocada pela defesa, ostensivamente para mostrar que a resistência torturava tanto quanto os nazistas. Mas, ironicamente, A dor talvez seja seu texto menos vaidoso e autocentrado.

A dor exemplifica perfeitamente as diferenças entre os gêneros literários da autobiografia e do testemunho. Se o momento da escrita de uma autobiografia quase sempre obedece a anseios pessoais da autora, muitas vezes independentes do mundo histórico lá fora (divórcio, proximidade da morte, etc.), o momento da escrita de um testemunho obedece a anseios históricos, coletivos, sociais. Um testemunho sempre é uma autobiografia, mas a serviço da História, onde uma pessoa fala não por si, mas por todo uma coletividade silenciada ou subalternizada. Não é à toa que Duras escreve esse texto provavelmente em 1945, logo após guerra, mas só o publica quando, em resposta às primeiras narrativas negacionistas do Holocausto, começa uma nova onda de testemunhos de sobreviventes e vítimas. Em A dor, Duras não fala por Duras, mas, pelo contrário, em um mar de autobiografias de soldados vitoriosos, ela fala por todas as mulheres que esperaram, que sofreram, que não tiveram notícias, que enterraram seus filhos ou maridos, pais ou irmãos.

Mais tarde, em 2006, dez anos depois de sua morte, as dúvidas foram resolvidas com a publicação de seus cadernos, no livro Cadernos da guerra. De fato, o texto tinha sido em larga medida escrito em 1945, mas significantemente revisado e expandido para publicação em 1985. (A edição brasileira de A dor contém a fac-símile de seis páginas.) Comparar ambas versões, a dos cadernos e A dor, não só nos ensina muito sobre o método artístico de Duras, como até mesmo os trechos idênticos confirmam os insights de Jorge Luis Borges no conto Pierre Menard, autor do Quixote: o significado de um mesmo trecho, ao ser escrito em 1945 por uma mulher exausta que acabara de recuperar o marido que já julgava morto, não é o mesmo de quando publicado em 1985 por uma autora celebrada que ganhara o prêmio literário mais prestigioso do país no ano anterior.

A dor é a maior obra-prima de Duras, pois é o único livro no qual ela vence Duras, sua vaidade e seu autocentramento, e simplesmente se permite ser a porta-voz de uma comunidade maior, de uma verdade mais coletiva que suas obsessões pessoais de sempre. Elaine Scarry, em seu magnífico The body in pain, um dos ensaios mais brilhantes do século 20, infelizmente ainda inédito no Brasil, defende que a dor destrói a nossa habilidade de comunicação verbal. A verdadeira dor, por definição, seria incomunicável. Só mesmo, então, uma grande artista da palavra, que passou toda a carreira forçando os limites do dizível, tensionando a fronteira entre o que pode e o que não pode ser dito, para conseguir articular literariamente essa dor por definição indizível e inarticulável. De fato, A dor não é uma fonte histórica fidedigna. Duras nunca é uma fonte fidedigna de nada. Mas já temos muitos testemunhos das batalhas e massacres da Segunda Guerra. A dor é imbatível em sua precisão emocional. Talvez seja a melhor articulação literária da dor na literatura.

A dor
Marguerite Duras
Trad.: Luciane Guimarães Oliveira e Tatiane França
Bazar do Tempo
208 págs.
Olhos azuis, cabelos pretos & A puta da costa normanda
Marguerite Duras
Trad.: Adriana Lisboa
Relicário
172 págs.
Savannah Bay
Marguerite Duras
Trad.: Angela Leite Lopes
Temporal
176 págs.
Marguerite Duras
Nasceu na Indochina Francesa, atual Vietnã, em 1914, e morreu em Paris, em 1996. Escreveu contos, romances, peças de teatro, filmes. Em 1984, recebeu o Goncourt, maior prêmio literário da França, por O amante.
Alex Castro

É autor de Mulher de um homem só (2009), Onde perdemos tudo (2011), Outrofobia (2015), Atenção (2019) e Mentiras reunidas (2023).

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