Há quatro anos fui presenteado por um amigo escritor com um exemplar da primeira edição d’O agressor e, antes de saber que Rosário Fusco (1910-1977) era comparado a Kafka e da mesma forma ignorando outros pormenores da literatura do furioso mulato cataguasense, parti para a leitura. E saí dela espantado. Porque estava em contato com algo realmente novo. Não podia comparar o romance com nada que conhecesse até então. Nem com o escritor tcheco. Porque o texto de Fusco, embora com um pé na realidade e outro no fantástico, não era o que se pode chamar de linear. As personagens eram importantes apenas enquanto portadores de sua palavra, ou pelo menos da do narrador. E embora o romance estivesse cheio de jogos de palavras, diálogos chulos, tudo era minuciosamente pensado, fruto de um trabalho de ourivesaria, lento e perfeito, no qual o encadeamento das frases só servia à coroação de uma ironia refinada.
Meu fascínio pelo romance foi tão grande que resolvi fazer uma visita a Cataguases, para conhecer um pouco do universo criativo do escritor. Fiquei sabendo que Fusco havia sido candidato a deputado federal com o bordão “Não fique confuso, fique com Fusco. Mais vale um Rosário que um terço”, eleição em que obteve apenas três mil votos. Mesmo assim atraiu em vida mais eleitores do que leitores. Horrorizava as velhas carolas bebendo uísque só de cueca na sacada de sua casa, era de pouca conversa no final de sua vida e sua última esposa fora a franzina Anne Marie, que trouxera da França. Fui ao cemitério e encontrei ambos ocupando o mesmo túmulo. Também me contaram que Rosário Fusco ficou esquecido graças ao fato de ter apoiado Getúlio e sua ditadura. Duvido que isso tenha sido tão decisivo assim. Penso que a obra do escritor mineiro esteja há tanto tempo no limbo mais por seu aspecto literário mesmo. É um escritor difícil. Foge à linearidade a que os leitores brasileiros estão acostumados. Foge aos roteiros redondos, maquinados para ganhar a atenção do público. E mais do que isso, causa medo. Uma literatura tão imponente é uma afronta aos nossos intelectuais.
Fusco participou da antropofagia modernista, mas se desvencilhou do que havia de ruim nessa influência e foi além dos seus companheiros da revista Verde. Foi poeta também, mas a sua poesia está longe de ter a importância de sua ficção.
Por essas artimanhas de que vive a cultura brasileira, mais interessada em holofotes e badalações do que em qualidade, Fusco além de esquecido até 2000, quando a Editora Bluhm ressuscitou O agressor, possuía alguns romances inéditos. Entre eles, a.s.a. — associação dos solitários anônimos. Se o relançamento de obras essenciais da literatura já é uma atitude digna do mais sublime respeito, imagine o lançamento de um livro inédito de um escritor genial!
Rosário Fusco inicia o a.s.a. com uma epígrafe explicativa do seu estilo: “Assim como o sobrenatural é o reverso do natural, o supra-real é o outro lado do real, o por-detrás”, querendo com isso situar o leitor, que se enganaria ao julgar-se diante de uma obra do realismo fantástico ou mesmo do surrealismo. Bem certo é, entretanto, que o termo criado neste romance, o Supra-real, não foi adiante, tendo os estudiosos preferido inseri-lo em escolas já existentes.
Antes de entrar no mérito da crítica do romance em si, faço uma observação no que diz respeito à edição. Alguns erros de ortografia poderiam ser evitados caso a editora contratasse um revisor de gabarito, desobrigando-nos de conviver com desrespeitos do tipo “sombrancelha” e “prefiriam”, mas que, no final, pelo aspecto de festa envolto no lançamento, não comprometem a edição.
Em a.s.a., Fusco trata dos anônimos e das instituições, inclusive políticas, como pode ser percebido pela leitura dos dois últimos capítulos do livro. E como anônimos que são, as personagens ganham nomes que se harmonizam com sua condição, Fulano, Fulana, Beltrano, Beltrana, Sicrano, Sicrana, Louro, Alemão, Maria e por aí vão. E a associação é constituída, embora no fundo não exista e não vá existir jamais (o que não importa), porque todos lutam pela individualidade e solidão. Paradoxal. Advertindo-nos do caráter supra-real de sua instituição, “o conhecimento do nosso princípio é a provisória penugem da asa”, Beltrano não tenta arrebanhar novos sócios, mas transformar os existentes em criaturas duais. A dualidade sempre foi preciosa a Rosário Fusco. Associando a supra-real asa, borrifada pelos capítulos do romance, e presente em anjos ou em cupidos, à instituição a.s.a., fica mais fácil compreender o romance.
Assim é que não apenas as personagens têm a sua cara-metade, Fulano-Fulana, Sicrano-Sicrana, como em uma certa altura, solitários e desiludidos com as instituições, sejam matrimoniais, empregatícias, medicais, políticas ou advocatícias, rompem com tudo, e para não se verem tão sós, passam a ser dois, o segundo representado pelo espírito de um, no caso de Fulano, ou alter-ego de outro, Beltrano. Entretanto, sem nomear esta segunda e agora existente personagem, sombra e anexo da primeira, ele pode seguir na sua aventura individual e, visto que inexistente no plano da realidade, supra-real, o que culmina na não-existência definitiva dessa nova sociedade, a a.s.a.
Dotado de um domínio narrativo que rompeu com as tradições modernistas, Fusco é, sobretudo, irônico. Não encontramos um parágrafo sequer em todo o livro que não tenha esse senso sarcástico aguçado. Há também uma beleza poética sem similares, uma invejável perícia com as frases, uma qualidade estética constante, sem quedas.
Leio na orelha de a.s.a. que Fusco deixou outros romances inéditos, “amarelando na gaveta”, como bem escreveu Luiz Ruffato, seu conterrâneo. Fico na esperança de que sigam o exemplo da Ateliê e editem essas obras, reeditem os demais romances, todos esgotados. Há uma urgência em conhecer melhor um dos idealizadores da revista Verde, a literatura brasileira de qualidade, amarfanhada e esquecida nos escaninhos e gavetas de seus escassos amantes, implora esse resgate.