As agruras de uma velha conhecida

"Contos morais", de J. M. Coetzee, retoma a personagem Elizabeth Costello em narrativas sobre relações familiares e a forma como humanos tratam animais
Ilustração: J. M. Coetzee por Oliver Quinto
01/01/2022

“Se você for filosófico, como a maioria dos animais”, diz Elizabeth Costello a seu filho John em A velha e os gatos, uma das narrativas breves de Contos morais, de J. M. Coetzee, “você dá de ombros e diz a si próprio que o mundo é assim mesmo e continua com a sua vida.” Pensando assim, fica a impressão de que os bichos são movidos por uma força de vida tão insistente que possivelmente os faz mais aptos a viver do que nós, ora seus cuidadores, ora seus predadores.

Seria possível contrapor que nessa atitude de “dar de ombros” reside certo conformismo com as limitações, incompatível com a extensa lista de feitos humanos, desde a submissão de parte do poder da natureza até a capacidade de prolongar a duração de uma vida sempre mais um pouco. A questão incontornável que deve ser colocada com mais ênfase a cada nova geração, no entanto, concerne aos efeitos colaterais desse inconformismo, que também poderia ser chamado de ganância. Se os animais costumam cuidar dos lugares onde vivem, hoje parecemos vítimas da incrível criatividade humana para criar soluções que ao mesmo tempo envenenam a terra. Ficamos como se reféns do ideal de progresso criado por nossa própria espécie, “de muito engenho e pouco siso”, como escreveu Primo Levi no poema Almanaque.

Estrutura e início
Contos morais é formado por sete narrativas breves, sendo que cinco delas são protagonizadas por Elizabeth Costello, a personagem escritora de Coetzee que já tinha dado as caras em A vida dos animais (1999) e Elizabeth Costello (2003). Nesses dois livros, a renomada ficcionista é construída por meio da exposição de suas ideias em conferências e debates e, perifericamente, a partir de suas relações familiares.

Contos morais, se lido de forma autônoma, poderia ser dividido entre as narrativas em que os personagens não têm nomes e histórias de vidas definidos, apresentados em função dos econômicos eventos que constituem os enredos, e as histórias que tematizam a relação de uma mulher idosa com os seus filhos. Em comum, há a voz contida e precisa de um narrador em terceira pessoa.

No primeiro conto, O cachorro, uma personagem passa diariamente a caminho do trabalho em frente a uma casa onde mora um cão que late furiosamente toda vez que a vê. A mulher se sente humilhada, porque o latido dá-lhe um medo incontrolável, fazendo-a acreditar convictamente que o cão late com a finalidade de assustá-la. Ela retira do animal o atributo de viver a própria vida a despeito das circunstâncias favoráveis ou ingratas e substancializa o seu latido até o ponto em que adquire um sentido: “Pode não saber nada de raças de cachorros, mas tem uma boa ideia da satisfação do cachorro nesses encontros com ela. É a satisfação de dominá-la, a satisfação de ser temido”.

No segundo conto, o narrador assume a perspectiva de uma mulher do tipo mãe de família que se sente feliz por semanalmente encontrar-se com um amante. Não lhe parece que o relacionamento extraconjugal seja uma ofensa ao marido. Ela não sente culpa porque não crê subtrair nada do companheiro, está apenas dispondo do seu “tempo livre”, cessando de “ser uma mulher casada” para ser ela mesma “pelo espaço de uma ou duas horas”, o que oferece-lhe um olhar de admiração inviabilizado pelo ritmo habitual da família. Fora de casa, portanto, ela não busca por nada que concorra com a sua vida conhecida, porque encontra alguma coisa diferente.

A personagem da primeira história se vê perseguida por um cachorro, na segunda uma mulher encara o que poderia ser chamado de traição como um ganho de potência e não como um desvio do compromisso conjugal. O tom pacato e paciente do narrador aderido ao olhar das duas mulheres transita entre a acepção de valores de cada uma e a perspectiva ampliada pela terceira pessoa, fazendo pensar que a noção moral dessas duas histórias é o sentido autorreflexivo que cada uma garante aos eventos narrados. As formas como processam os acontecimentos de suas vidas parecem mais determinantes para a construção de nexos positivos ou negativos do que a ocorrência em si, como se as duas submetessem o exterior ao funcionamento de seus mundos interiores.

A saga de Costello
A partir de Vaidade, chegamos às narrativas protagonizadas por Elizabeth Costello. Os contos contêm as datas de suas redações, cuja ordenação não é estritamente linear, mas os fragmentos da história de Costello parecem coincidir com o agravamento do seu envelhecimento.

Na primeira narrativa, aparece uma referência temporal precisa: é o aniversário de 65 anos da escritora, visitada na ocasião pelos dois filhos, pela nora e pelos netos. A mulher está maquiada, o que chama a atenção dos filhos e é assimilado com um desprezo velado. No trajeto de volta no carro, os filhos falam mais livremente sobre a estranheza do aspecto de Costello e a necessidade de intervir na situação para evitar frustrações e sofrimentos daquela que diz querer encontrar um tipo de olhar uma última vez.

Em Quando uma mulher envelhece, Costello está com 71 anos e o assunto da intervenção reaparece de modo mais concreto. Sua filha Helen está vivendo na França, seu filho John reside nos Estados Unidos, e cada um deles tenta convencer a mãe a deixar a Austrália para morar mais perto dos filhos, afinal ela é uma mulher idosa que precisa de cuidados.

Em A velha e os gatos, o filho tenta mais uma vez intervir nas escolhas da mãe, que agora vive numa aldeia na Espanha tomando conta de uma horda de felinos e de um senhor exibicionista, presenças detestadas pelos outros moradores do lugarejo.

A insistência para que Costello abdique da autonomia e faça a coisa mais razoável, isto é, transferir-se para uma casa de repouso, onde teria supostamente mais comodidade e assistência, volta em Mentiras — pequeno conto epistolar em que John escreve furioso à esposa, narrando a resistência da mãe, agora mais debilitada e abatida, em deixar o vilarejo na Espanha, mesmo com os riscos de viver isolada.

O último conto, O matadouro de vidro, é constituído por anotações de Costello sobre os modos dos humanos matarem os animais, enviadas ao filho John porque a escritora diz que tem sentido medo de morrer e daquele trabalho se perder. Sem referências espaciais ou temporais precisas, é a narrativa que mais tem pontos de encontros com A vida dos animais, por misturar ao vínculo entre mãe e filho uma discussão a respeito do estatuto que os homens atribuem à vida dos bichos.

No livro de 1999, entre as várias ideias defendidas por Costello nas conferências numa universidade americana, as relações entre homens e animais são organizadas em dois eixos centrais: a razão e a poesia. No primeiro caso, a escritora questiona a distinção entre homem e bicho unicamente pela premissa de que animais são destituídos de razão; no segundo, ela traça uma aproximação entre a alteridade e a compaixão da criação poética e levanta a possibilidade de ver a vida animal por meio da pulsação da vitalidade como semelhança com a humana.

Essa narrativa de ideias é construída de modo muito intrigante, sobretudo por causa do ponto de vista. O olhar predominante é do filho, John, não de Costello; acessamos as ideias da mãe segundo o modo do filho participar dos encontros acadêmicos. Sendo assim, a apresentação da mãe é escandida pelos momentos em que ele devaneia ou conversa com a esposa, uma filósofa particularmente impaciente com as crenças da sogra. A estrutura do livro contrapõe a todo tempo a visão de mundo de Costello com possíveis contestações, tanto as que surgem aparentemente misturadas a ressentimentos pessoais, da parte do filho e da nora, quanto as que aparecem polidamente no debate acadêmico.

A discussão fica, portanto, aberta, irresolvida. Quando dizem a Costello que a escolha pelo vegetarianismo é nobre, ela rebate e diz que usa sapatos de couro; quando lhe perguntam o que quer levantando o debate sobre o direito dos animais, ela hesita, não sabe bem responder, só consegue dizer que existe uma lógica muito perversa na industrialização da morte, num estatuto sem exterior da razão que permite exercer a submissão sem limites — “nós gerentes entendemos a dança maior, portanto podemos decidir quantas trutas podem ser pescadas ou quantos jaguares podem ser enjaulados sem afetar a estabilidade da dança. O único organismo sobre o qual não pretendemos ter esse direito de vida e morte é o homem. Por quê? Porque o homem é diferente. O homem entende a dança de um jeito que os outros dançarinos não são capazes de entender. O homem é um ser intelectual”[1]. A escritora afirma que não quer ser exemplo para ninguém, retirando o problema da alçada do individualismo; não se trata de envaidecer-se pelos pequenos gestos, até porque ninguém se salva sozinho de um barco prestes a afundar.

O matadouro de vidro termina com uma anotação de Costello horrorizada depois de assistir a um programa de televisão que retrata uma incubadora industrial de galinhas: os pintinhos são colocados numa esteira, sendo que as fêmeas são transferidas para uma caixa onde viverão suas vidas produtivas e os machos são triturados para virarem uma pasta que servirá ou como fertilizante ou como alimento de gado. Costello, então, afirma:

É para eles que eu escrevo. A vida deles é tão breve, tão facilmente esquecível. Eu sou o único ser no universo que ainda se lembra deles, se deixarmos Deus de lado. Depois que eu for embora, haverá apenas um vazio.

Conexões narrativas
Contos morais e A vida dos animais se encontram na íntima relação entre o contato próximo com a finitude por parte de uma mulher que envelhece e a atenção destinada aos bichos. John, aliás, em A vida dos animais, aproxima o interesse da mãe pelo tema ao envelhecimento, quase sugerindo tratar-se de um primeiro sinal de senilidade.

É como se Costello fosse uma voz anacrônica, prestes a se extinguir e capaz de estranhar que uma esteira mortífera de pintinhos possa ser naturalizada ou simplesmente ignorada. Menos do que sugerir um projeto alternativo ou de refugiar-se na soberba dos coerentes esclarecidos, a personagem expõe a sua confusão indignada com a capacidade da vida andar adiante impassível, mesmo com o saldo de mortes necessário ao prosseguimento desse curso cruel.

Nos dois livros, Costello é construída por suas ideias e pelas relações familiares, o que provoca a pensar que as formas dos humanos usarem os animais e as tensões entre mãe e filhos estejam vinculadas aos limites de compreensão das vicissitudes de existências alheias. A casa de repouso ofereceria uma vida mais cômoda à mãe, diz o filho. E a recusa da mãe em desejar essa vida mais cômoda o exaspera. Mentiras, aliás, é encerrado com o pedido de John à esposa para que um avise o outro quando chegar o momento em que não for mais possível responder pelos próprios atos. Um decreto como esse, contudo, depende de parâmetros claros de bem-estar, o que não costuma ser unívoco, chega a ser paradoxal até: se o filho quer o bem da mãe, por que ele não consegue aceitar a concepção dela de viver bem?

Às incisivas sugestões dos filhos para os rumos de sua existência, Costello responde de um modo tão direto quanto desconcertante:

Para mim a questão é a seguinte: por que eu imporia a minha filha o fardo de cuidar de mim? E acredito que para você a questão seja: será que consegue conviver consigo mesma se não se propuser, ao menos uma vez, com toda a sinceridade, a cuidar de mim e me proteger?

É curioso como as histórias de Contos morais misturam à preocupação dos filhos com a impaciência, como se esperassem mais doçura na capitulação de autonomia da mãe. Mais curioso ainda é como as breves narrativas exploram a velhice pelo redimensionamento do equilíbrio de cuidado e dever estabelecido entre genitores e proles, tensionando ainda o abate dos animais com a impossibilidade humana de simbolizar a própria morte.

A preocupação com os destinos dos animais e a escolha por isolar-se e cuidar de existências indesejadas indicam como Costello reage ao envelhecimento: ao invés de ser assistida, ela insiste em zelar por vidas alheias.

Um possível caminho aberto pelos Contos morais de Coetzee é o desarranjo do ensimesmamento, deslocando a autorreflexão para fora, e a ampliação do escopo do olhar para conformações de existir que extrapolem a régua da experiência humana. Talvez no ato de dar de ombros, dizer a si mesmo que o mundo é assim e continuar com a própria vida esteja envolvida uma resignação inspiradora, porque indica um tipo de resiliência que coexiste com os limites, diferente da submissão da existência à secura pragmática do sentido ou de um progresso cego que deixa para trás uma viscosa e mórbida trilha de rastros.

Contos morais
J. M. Coetzee
Trad.: José Rubens Siqueira
Companhia das Letras
137 págs.
J. M. Coetzee
Nasceu na Cidade do Cabo (África do Sul), em 1940. A vida escolar de Jesus (2016), Desonra (1999) e Infância (1975) são alguns de seus mais de 20 livros publicados. Ganhou o Nobel de Literatura em 2003.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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