Árvores negras e mares revoltos

Entre sonho e memória, Han Kang transforma trauma coletivo em gesto poético de resistência e delicada conexão com a vida
Han Kang, autora de “Sem despedidas”
01/09/2025

Ao percorrer a obra de certos autores, é interessante perceber a prevalência de determinadas imagens. Entrar no universo literário de Han Kang, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2024, passa por um caminho em que o mundo vegetal e os estados oníricos têm algo importante a dizer. No aclamado romance A vegetariana, publicado no Brasil em 2013, a protagonista Yeonghye apreciava ver o mundo em posição invertida, pois, segundo ela, tal postura seria também aquela das árvores, que estariam de ponta cabeça, “com as mãos no chão”. A escritora sul-coreana conta ali a história de uma mulher decidida a não mais comer carne, renúncia surgida após um de seus muitos pesadelos encharcados de sangue.

A jovem sonha em se tornar planta, necessitando apenas de água e sol. Ela quer se salvar da brutalidade recusando todo gesto violento, mas está cada vez mais frágil fisicamente, aproximando-se da morte. Na visão dos médicos, a decisão parece incompreensível. A despeito da extrema lucidez, é internada em um hospital psiquiátrico.

Em Atos humanos, publicado por aqui em 2021, Kang problematiza um trauma transgeracional. A autora narra, nesse romance, os protestos ocorridos na cidade de Gwangju, em 1980, contra a ditadura de Chun Doo-hwan, em que milhares de mortes aconteceram após a ação do exército, que disparou contra os manifestantes. Com grande domínio narrativo, a autora recria ficcionalmente o episódio real, construindo um mosaico de vozes distintas para recuperar o acontecimento brutal.

Força poética
Já em Sem despedidas — publicado originalmente na Coreia do Sul em 2021 e seu mais recente livro traduzido no Brasil —, Kang retorna à figuração das árvores, desdobrada na mesma direção em que sustenta parte de sua obra, elaborada a partir de imagens poéticas de grande força. Tudo começa com um pesadelo recorrente, quando a personagem Kyung-ha sonha com árvores pretas e túmulos em um campo repleto de ossadas sendo varridas por ondas do mar. Sozinha em seu minúsculo apartamento nos arredores de Seul, deprimida e sem perspectivas, ela narra em primeira pessoa a tentativa de escrever uma dolorida carta de despedida.

A tarefa é interrompida pelo telefonema da amiga Inseon, que suplica por sua presença na ilha de Jeju, localidade ao sul da península coreana onde vive e trabalha como fotógrafa e cineasta. Hospitalizada, sofrera um acidente grave em sua oficina e precisa de ajuda para alimentar seu pássaro de estimação, deixado às pressas na casa do lugarejo isolado em que vive. Próximas há vinte anos, desde que trabalhavam juntas em uma revista, elas planejavam um projeto comum, sempre adiado, em que árvores esculpidas em tamanho real surgiriam como “pessoas amontoadas”, em referência a um massacre acontecido em 1948, em que a vila de Inseon fora incendiada e trinta mil pessoas assassinadas e jogadas no mar. À época, o governo sul-coreano instaurara a repressão ao comunismo, e os opositores do regime se tornaram alvo de intensa violência.

Decidida a cumprir o desejo da amiga, Kyung-ha chega a Jeju em meio a uma nevasca intensa. Ali, a natureza se interpõe de todas as formas: vento, chuva, frio e rajadas de neve se colocam entre ela e a casa em que o pássaro se encontra sem comida ou água.

Em meio a uma atmosfera de bruma, acompanhamos o deslocamento dessa mulher que, a despeito da leveza de um corpo frágil, avança corajosamente em duas direções que, a princípio, parecem opostas: a figura delicada da ave e uma história de carnificina.

Na trajetória, tudo vai sendo “engolido pelo silêncio da neve”, e a ilha surge como lugar de grande solidão. Para capturar a paisagem do lado de fora e descrever a numerosa gama de sensações internas, a narrativa incorpora descrições do mundo natural: a neve é personagem que cria climas e define formas de sentir e dizer as relações. A brancura ganha conotações variadas na obra da autora, espalhada por toda parte — vale lembrar que o branco é a cor tradicional do luto no Oriente, representando silêncio e rememoração.

Os flocos de neve caem sobre o asfalto preto molhado e em seguida desaparecem sem deixar vestígios. Como uma música que vai se assemelhando ao silêncio conforme o fim se aproxima. Como as pontas dos dedos que se deixam cair cuidadosamente em vez de repousarem no ombro de alguém.

No dialeto falado na região, repleto de consoantes sonoras e de entonação suave, também o vento é fator determinante, afirma Inseon, pois o final das palavras seria “curtinho porque venta forte em Jeju”, suprimindo o fim dos vocábulos. A variante dialetal é a forma com que Inseon se dirigia à própria mãe, adoecida nos últimos anos de vida e necessitada de cuidados da filha antes de morrer. A língua dos afetos e da conexão com o território demarca fronteiras físicas e simbólicas, sinalizando diferenças em relação ao modo de falar na capital do país.

Relatos de horror
Ao finalmente chegar à casa vazia, Kyung-ha entra em contato com a intimidade de Inseon e com a memória traumática daquele lugar, acessando arquivos organizados com minúcia para documentar o massacre que afetara o pai da amiga e outros familiares. Pastas, fotografias de ossos, documentos e relatos de horror se materializam entre as paredes da morada, permitindo à personagem acessar a dor que atingiu gerações daquela comunidade a partir dos fragmentos coletados pela mãe de Inseon durante décadas. Soma-se a isso um estado intervalar em que a narradora se encontra, em uma zona de indistinção entre fantasia e realidade. Ela não sabe ao certo se sonha acordada ou se está diante de algo real.

A narrativa avança lentamente, pela aspereza do que se narra e pela forma encontrada pela autora para acessar o território pantanoso da memória individual e dos traumas coletivos. O livro se sustenta em ruminações e sensações descritas sem pressa ou pretensão de enfeitar o texto. Kang indaga sobre formas de conexão – entre humanos; entre estes e o mundo vegetal e animal – ao mesmo tempo que questiona em que se baseiam essas relações: opressão, domínio, colaboração? A vida ou a morte de um pequeno pássaro não se constrói em oposição à vida ou à morte dos seres humanos, mas em situação de complementariedade. Há uma atenção delicada a tudo o que vive.

Por isso é tão determinante o sonho inicial da protagonista, momento em que se vê diante de impasses e traumas (árvores negras, ossadas, mar revolto justapostos). O caráter individual do sonho nunca se aparta de uma dimensão coletiva, reveladora da violência da sociedade. A dimensão onírica surge como instância de cura, encurtando o passo entre a realidade e uma mente enevoada. Nesse sentido, sonhar é uma espécie de antessala do que se anuncia como ação, na atitude vigilante para que novas atrocidades não aconteçam.

No passado, Kyung-ha escreveu um livro; já Inseon trabalha como documentarista e marceneira. Os pesadelos recorrentes da primeira e o trabalho da segunda de polir enormes toras de madeira para o projeto comum encontram acolhimento tanto no espaço mental quanto na materialização de variadas linguagens artísticas, sejam elas livros, filmes, instalações ou documentários. São formas encontradas para dizer algo preso na garganta.

A mãe de Inseon acreditava na superstição de que, se uma pessoa deixasse perto de si um ferro afiado, não teria pesadelos. No entanto, sonhava constantemente, incapaz de se livrar do terror imposto à sua comunidade. Território livre de censura, o sonho persistente da narradora com árvores pretas insiste na urgência de dar sentido e forma ao pesadelo, momento em que o mundo interior da personagem pode se tornar um gesto de transformação social. A sintonia com o mundo onírico é menos uma viagem em torno do próprio umbigo e mais uma forma de se conectar coletivamente.

No fluxo do sonho e das águas da memória, as ondas do mar em que ficaram insepultas milhares de pessoas insistem em devolver imagens que não podem ser esquecidas ou afogadas. De volta à consciência, os espectros reclamam um lugar na mente de Kyung-ha e na prosa arrebatadora de Han Kang.

Sem despedidas
Han Kang
Trad.: Natália T. M. Okabayashi
Todavia
269 págs.
Han Kang
Nasceu em Gwangju (Coreia do Sul), em 1970. Estudou literatura coreana na Universidade Yonsei, em Seul, e estreou como poeta em 1993, publicando em seguida contos e romances. Reconhecida internacionalmente pelo livro A vegetariana (2007), venceu o Man Booker International Prize em 2016. Sua obra, marcada por imagens oníricas e pela delicada relação entre corpo, natureza e violência histórica, inclui ainda Atos humanos (2014) e Sem despedidas (2021). Em 2024, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se a primeira autora sul-coreana laureada.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho