Logo no início da ópera La Bohème os amigos artistas Rodolfo (poeta) e Marcello (pintor) conversam sobre o clima gelado que faz em seu modesto e mal aquecido apartamento. Rodolfo, então, propõe queimar os manuscritos da tragédia na qual trabalhava para alimentar o forno. O que realmente acabam por fazer dali a pouco, já com o testemunho dos outros dois amigos, Colline, o filósofo, e Schaunard, o músico.
A primeira das 47 vezes em que vi essa cena fiquei chocado. Como pode alguém ser tão desprendido?! Sabedor do trabalho que dá gastar horas debruçado sobre folhas de papel (ou sobre uma tela de computador, vá lá) para produzir algo de que se possa ter orgulho (ainda que eu seja o único a parecer sentir isso), morri de agonia enquanto Rodolfo e seus amigos jogavam folhas para cima e para dentro do forno. Mas, então, a revelação. É para isso que serve! Arte serve para nos aquecer. Não em sentido figurado, mas literal mesmo.
Ok. Forcei. A revelação foi outra. Uma ária de ópera respondeu à velha questão (para que servem a arte e as humanidades?) de forma infinitamente mais objetiva e precisa do que meu artigo aqui no Rascunho (Pra que serve a literatura?), por sua vez uma tentativa de diálogo com o blog do crítico literário norte-americano Stanley Fish, no The New York Times.
Resumindo: Fish, embora seja da área de Artes e Humanidades, concordava ser difícil convencer as fontes financiadoras a alocar dinheiro para essas áreas nas universidades do estado de Nova York, em detrimento de áreas como biologia ou saúde. Afinal, o que ganha o estado com mais uma interpretação de Hamlet? Ou um livro de poesia? Ou um de crítica cinematográfica? Ou, pior ainda, um de filosofia moral? Nada. Absolutamente nada, acreditamos Fish, eu e mais algum bocado de seus leitores. Mas um outro bocado ficou bravo (provavelmente professores e/ou alunos dessas áreas, diretamente atingidos pelo corte de financiamentos), alegando que as artes e humanidades engrandeciam as pessoas. Note bem que o “engrandeciam” tinha quase sempre uma conotação ética. Raramente estética. Algo de que Fish e eu duvidamos seriamente. Se filosofia, literatura e que tais fizessem dos homens seres melhores moralmente falando, os departamentos dessas disciplinas nas universidades não teriam pessoas ambiciosas, traidoras, cruéis, falsas, enfim, toda a lista de adjetivos que compõem a natureza humana. E todos sabemos que a quantidade é a mesma dos departamentos de medicina, direito e botânica.
A essa altura o leitor assíduo do Rascunho deve estar se perguntando: mas por que desenterrar esse assunto incômodo? Deixa quieto! Se alguns gostam de se iludir com a pretensa utilidade moral de uma obra d’arte, deixa quieto! Não dá. Pellegrini, o moralista, atacou de novo. Então me sinto na obrigação moral (!?) de contra-atacar. Eu até tinha me segurado quando li sua réplica Exigir ética é ser moralista?, na qual ele afirmava, entre outras coisas, que “a cultura nazista pregava a eliminação dos adversários”, como se nazismo fosse uma espécie de “cultura”, e não uma ideologia, e como se só eles pregassem a eliminação dos adversários, negando o fato objetivamente constatável de que qualquer adversário almeja a eliminação do outro (literal ou metaforicamente, na guerra ou no jogo). Ou ainda: “O leninismo pregava que os fins justificam os meios”, como se tal regra maquiavélica não fosse o mote da weberiana ética da responsabilidade, ou seja, mantra de todo e qualquer político, independentemente de seu viés ideológico. Ou mais ainda, quando no mesmo texto é capaz de dizer “prefiro acreditar que o certo é certo e o errado é errado”, e ao mesmo tempo confessar que assinou trabalhos escolares sem os ter feito.
Arte ética?
Pois não há de ver que ele voltou à carga, numa espécie de entrevista fictícia com o “mago” Paulo Coelho? Com o pretexto de comparar o atual fenômeno de vendas com outro escritor popular do século passado, Paulo Setúbal, hoje esquecido, Pellegrini elogia Paulo Coelho, desenterrando suas críticas a Machado de Assis (um “monstro ético”): “Na verdade, falei, no artigo [em que elogia Coelho] digo que você levou muita paulada por despeito e preconceito, de uma imprensa que (…) discrimina livros de auto-ajuda, enquanto também é cega para a carência ética na literatura, embora cobre ética dos políticos. (…) E os mesmos que não enxergam as monstruosidades de Machado, falei, malharam você por focar gente boa fazendo coisas boas e querendo melhorar”. Mais uma vez Pellegrini demonstra confundir ética com estética, pretendendo submeter os valores desta aos daquela.
Arte deve ser ética? Boa arte é a que tem uma mensagem moralmente enriquecedora? Para começo de conversa, admitindo-se o sentido positivo que a palavra ética tem (sim, porque ética pode ter um sentido absolutamente neutro, de relações intersubjetivas apenas) e admitindo-se ainda como sinônimo de moral (significarão coisas iguais ou diferentes, dependendo do autor), para eliminarmos de cara dois problemas que enfrenta alguém que exige que a arte seja ética, já nos deparamos com um terceiro, esse inevitável. Se uma determinada obra de arte tem de ser ética, o que é “ser ético”?
É submeter seu conteúdo ao filtro de um categórico universal do tipo “só será ético se puder ser transformado em lei universal”? Tudo bem, digamos que o cidadão escreva um livro em que ninguém mente, já que mentir não pode se transformar em lei universal. Mas a história se passa num país em guerra em que há um episódio em que um sujeito escondeu uma família de, digamos, judeus, no porão de sua casa. Chega a SS e pergunta onde estão. Daí o sujeito conta logo, pois ele não mente. Ok, esse filtro não serve.
Ser ético então é submeter o conteúdo ao filtro que diz que será ético aquilo que trouxer mais benefício ao maior número de pessoas? Então tá. Um outro livro, esse de ficção científica, conta uma historinha de uma civilização prestes a ser extinta, a não ser que sugue todos os recursos do planeta Terra. Com isso os humanos é que serão extintos. Acontece que o planeta deles tem duas vezes mais seres vivos do que o nosso. Pronto. Feitas as contas, está justificada nossa aniquilação. Bom, parece que esse filtro também não é satisfatório.
Apelemos para Aristóteles, Tomás de Aquino, MacIntyre e toda turma que bota fé na ética das virtudes. Façamos uma lista de algumas. Patriotismo, coragem, lealdade… Tá bom, essas três já serviram para Leni Riefenstahl fazer seu famoso filminho O triunfo da vontade, que certamente foi aplaudido pelos pellegrinis alemães da época.
Cacoete de filósofo
Os simpatizantes da tese por mim refutada podem me contestar alegando que estou sendo chato demais, questionando demais, enquanto poderia tentar ser mais simples e aceitar que, num dado momento, há algum consenso do que é “ser ético” e isso bastaria para “filtrar” as obras de arte e categorizá-las em boas ou ruins a partir deste filtro. Tudo bem. Peço desculpas por este cacoete desagradável de filósofo. Mas então peço passagem a outro cacoete, de pesquisador médico. Abundam as evidências em neurociências quanto à natureza absolutamente irracional de nossas decisões morais. Pra citar apenas um de inúmeros experimentos com resultados bizarros e contra-intuitivos, Baron & Thomley demonstraram que as pessoas são mais propensas a gentilezas em frente a uma padaria cheirosa do que a uma loja sem cheiro algum. Quando perguntadas por que haviam sido gentis elas nunca respondiam que havia sido por causa do bom humor causado pelo cheiro de cookies recém-saídos do forno. Afinal, elas não se davam conta disso. Apresentavam justificativas racionais que lhes pareciam lógicas (do tipo “porque é a coisa certa a fazer”).
Aqui, um espertinho poderia dizer: “Se um cheirinho bom influencia pessoas a serem éticas, então por que não um bom Paulo Coelho?”. Livros com mensagens edificantes (meu lado filósofo está doido para perguntar o que é “edificante”, mas deixa pra lá) poderiam então ser de fato melhores. Sim, poderiam, da mesma forma que não-edificantes também. Basta dar prazer ao leitor. Ora, o cheiro do cookie não tem conteúdo ético algum, apenas dá prazer. Por esta lógica então, se Os 120 dias de Sodoma, do Sade, der prazer estético ao leitor ele estará propenso a ser mais gentil, mais “ético”. Ou o quadro Saturno devorando um filho, do Goya, ou a peça Quartett, de Heiner Müller. Sim, citei obras “transgressoras” de propósito. Poderia ainda lembrar que o protagonista Rodolfo, da já citada ópera La Bohème, foi canalha com sua Mimi, abandonado-a a própria sorte por ciúme infundado, sendo assim co-responsável por sua morte ao final (morte essa necessária ao contexto de uma das árias mais belas já criadas). Poderia também, claro, citar Dom Casmurro, do “monstro ético” Machado de Assis. Bentinho precisava ser vigarista para que o Otelo de Machado fosse mil vezes melhor do que o de Shakespeare e tão bom quanto o de Arrigo Boito (autor do libreto para a ópera homônima de Verdi).
O que nos traz a Paulo Coelho. Já escrevi aqui mesmo no Rascunho que não sou daqueles que malham Coelho sem tê-lo lido. Dei duas chances: O alquimista e Brida. Tinha uma expectativa, completamente não preenchida. Pensava que ele seria uma espécie de Sidney Sheldon ou Scott Turow brasileiro, ou seja, um bom contador de histórias, sem grandes pretensões filosóficas. Pois é o exato oposto. Sendo que as pretensões filosóficas beiram o pueril. Não dá. Não consigo imaginar seus livros nem para “corrigir” alunos que assinam trabalhos sem fazer. São esteticamente muito ruins. Se são eticamente edificantes, vai depender se o freguês os estiver lendo na frente de uma padaria cheirosa.
O fato é que arte não serve para coisa alguma. Por um motivo simples. Não tem de servir. Ela será “boa” ou “ruim” a depender de critérios cognitivo-estéticos. Se, além disso, for “moralmente edificante”, será acidental. Se for proposital não será arte, será panfleto.