Arte e sociedade 3

Para Brote, o ato surrealista mais simples consistia “em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto fosse possível, contra a multidão”
01/03/2002

Para Brote, o ato surrealista mais simples consistia “em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto fosse possível, contra a multidão”. Para Pia, a poesia nada mais é “do que a tentativa de instaurar a desordem no cotidiano das pessoas”. Quem mais pensa como eles? Faz sentido hoje em dia pensar como eles? Três e meia da madrugada, os rostos amarrotados e os copos com dois centímetros de cerveja morna — vai chegando ao fim o bate-boca na mesa do bar. No ar rarefeito: fumaça de cigarro, suor e futebol. Qual a melhor posição para o artista na sociedade contemporânea: no ataque ou na defesa?

Penso que a ressonância de suas obras é a grande duvida que dilacera todo criador, a não ser o que coloca seu trabalho como mais um produto na indústria de entretenimento. Essa insegurança sobre seu papel social está mesmo no cerne das criações modernas. A utopia de mudar a vida, dos surrealistas, ainda que bela, acabou resvalando para o sectarismo. Poetas e romancistas engajados caprichavam nos elogios a Stalin. Houve, claro, um rebaixamento do papel da literatura. Entretanto, a desumanização do homem, a devastação do meio ambiente, a ditadura do mercado e a injustiça social são realidades. Não podem ser encaradas como inevitáveis. Pessoalmente, sou um pessimista teimoso. Acho que o trabalho do escritor é uma luta vã, perdida, mas mesmo assim necessária e justa. O próprio ato de criar é uma maneira de valorizar a imaginação, outra forma de ver o mundo. Escrever é um exercício de liberdade em um mundo que sente cada vez mais falta disso. Desde que li Ascese, do Nikos Kazantzákis, na tradução do saudoso José Paulo Paes, entendi melhor que o “niilismo heróico” não significa entregar os pontos. “A virtude suprema não é ser livre, mas lutar pela liberdade”, prega Kazantzákis apaixonadamente. Reconheço que há uma boa dose de desencanto. Mesmo duvidando de tudo, é preciso ir adiante. Como diz Ernesto Sábato: “A maior nobreza do homem é a de erguer sua obra em meio à devastação, sustentando-a incansavelmente, a meio caminho entre a agonia e a beleza”.
Donizete Galvão é poeta, autor de Ruminações

A arte genuína é expressão e crítica da sociedade. Se é incapaz de transformá-la no âmbito coletivo, pode fazê-lo na esfera do indivíduo. O romance, já dissera Flaubert, é uma coleção de experiências. E as experiências de um homem podem influenciar a vida de outro, a ponto de alterar seu curso. A Bíblia, vista como uma obra ficcional, mudou a história da humanidade, embora, depois de dois mil anos, não saibamos qual é a sua verdadeira face: a divina (da glorificação de Cristo), ou a humanamente perversa (da Igreja). Por que tanta gente perde seus dias (ou ganha?, como ironizava Drummond), lendo os evangelhos, ou mergulhando em páginas de grossos romances? Certamente, para compartilharmos o espanto de existir — sublimação freudiana para o autor; fruição confortadora para o leitor, que educa seus cinco sentidos. A arte é a memória dos povos, a história não oficial do pensamento, e nos lembra as experiências vividas pela civilização, como uma doce e pontiaguda consciência. Apesar da realidade social não ser nada poética, a arte pode nos revelar a poesia que há no silêncio entre os indivíduos, na explosão de um sonho, no embate cotidiano dos átomos de um homem com o cosmos. Scherazade n’“As mil e uma noites” contava histórias ao sultão Shariar para não morrer. Assim fazemos nós, escritores, arautos da vida, no que ela tem de mais nobre e doloroso, posto que gastamos o tempo da nossa efêmera existência levando a desconhecidos o nosso amor, ou a nossa indignação. Da mesma forma o leitor perde (ganha?) seu tempo, tentando buscar a si mesmo no espelho que as experiências de seu semelhante lhe revelam. É vital que escrevamos para que as coisas não permaneçam como estão, sobretudo dentro de nós. Mas, se queremos transformar a humanidade, já aconselhava Tolstói, devemos começar por mudar a nós mesmos.
João Anzanello Carrascoza é contista, autor de O vaso azul

A literatura, como linguagem e sentido, influencia o caráter do indivíduo, aguçando-lhe a sensibilidade e a percepção do mundo para além da vida prática. Mas a estrutura social se impõe brutalmente e, inclusive, absorve a arte como um de seus produtos e enfeites. A arte não tem, de per si, o poder de modificar a sociedade concretamente. O escritor moderno, depois de uma profunda crise de consciência e inadequação, na virada do século 19 para o 20, tempo de suicídios e marginalizações, engendrou um modus vivendi e se equilibra numa contradição visceral. Como sujeito e cidadão, ele se posiciona no sistema, ou seja, assume um lugar na sociedade burguesa. Como artista, exorciza seus fantasmas por meio de um discurso de representação, utopias, alegorias e metáforas. Rebelde, a arte denuncia os furos e vazios da estrutura. Como pensava Octavio Paz, a modernidade artística articula-se em contradição com a estrutura político-econômica da modernização capitalista. De certa maneira, nesta era de poucos “apocalípticos” e muitos “integrados”, o eu artístico é a face gauche do sujeito burguês empírico, preocupado com o emprego, as contas e o plano de saúde.
Aleilton Fonseca é poeta e contista, autor de O desterro dos mortos

O que é arte? Nossa cultura (que até duas décadas atrás era apenas ocidental, mas se alçou ao status de globalizada) parece não estar bem certa da resposta. O que sabemos é que cada cultura, e dentro de uma mesma cultura, cada época histórica, possui seus específicos códigos de expressão artística, seus próprios conceitos do que é arte, para que ela serve e quem a produz e consome. A tradição helênico-cristã produziu através dos séculos, enquanto expandia seu domínio por meio de revoluções científicas e tecnológicas, uma vasta gama de expressões artísticas, algumas mais marcantes do que outras. Num processo evolutivo contínuo, Deus foi lentamente assassinado como inspiração e fim para todas as coisas, inclusive a arte. O século 20, por sua vez, veio destruir a crença do artista enquanto ser especial, elaborada pelos românticos. A arte da sociedade colonizadora foi se aproximando cada vez mais do chão. Alguns artistas voltaram-se para o povo, para a transformação social, para movimentos e manifestos. Mas em realidade, o surrealismo, o rock, a geração beat, o new age etc., foram frutos da sociedade em transformação — apenas mais um elemento de uma complexa rede de agentes e instrumentos de transformações sociais. Além disso, a sociedade de massas se apropria da arte, utilizando seus códigos, esvaziando-os de seus conteúdos radicais. A publicidade assimilou a linguagem do rock, a mítica on the road, a misteriosa Nadja etc., para nos vender desodorantes. Tudo bem. O que é arte? (Cada um de nós, artistas, deve saber responder a isso). Um produto da indústria cultural? Um tour de force com a linguagem? O combustível do vôo do espírito? Não acredito que a literatura ou qualquer outra forma artística, seja ela erudita ou não, possa modificar a sociedade (no sentido dessa grande engrenagem que encerra a todos nós, pois ela tem seus próprios e insondáveis caminhos), mas pode transformar indivíduos, iluminando-os (Pessoa me ensinou a diferença entre espírito e matéria no poema Passa uma borboleta). Escrevo sobre mendigos e pessoas excluídas porque elas representam nossa essência humana última, ponto de partida para qualquer transformação real.
Renato Rezende é poeta, autor de Passeio

Na natureza, a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto. Quanto mais eu penso, quanto mais eu raciocino, quanto mais eu pergunto, quanto mais eu questiono, mais a minha consciência me torna relativo e mais o Absoluto se distancia. Se a literatura tem o poder de modificar a sociedade? A resposta é não. Total e absolutamente não. Então o que é o escritor? A resposta a esta pergunta, no meu entender, tem que partir de um princípio e não de um pressuposto: o escritor, antes de ser escritor, é um ser humano. E, como tal, um ser mesquinho, mentiroso, hipócrita, orgulhoso e tudo que nós dizemos que os outros é que são. Assim sendo (e fugir disso é querer bancar um Lineu de pagodeira para rotular o homo scriptore numa classificação especial), é bom lembrar que, com uma diferença temporal de mais de dois mil anos, Sócrates e Flaubert foram acusados do mesmo crime. O que significa que o homem não mudou. Nem muda. E, permanecendo o seu moralismo faz-de-conta, como há de o escritor, sendo homem, mudar o todo de que faz parte? E, além do mais, também é bom lembrar que é a tão falada sociedade que paga regiamente os colunistas sociais para que eles determinem o que é in ou o que é out no aqui e no agora. No depois, aí o buraco é mais em baixo, pois não há como esquecer que os acusados Sócrates e Flaubert são, hoje, clássicos da melhor gema e qualidade. Surrealistas, beats, nova arte, novo modo de vida contra a rotina da sociedade burguesa… Ou seja: “o escritor tem de fazer a revolução?”. A resposta a essa pergunta deve ser feita com outra pergunta, dividida em duas partes: 1ª) quem disse que os escritores propõem mudanças radicais ou só serão considerados escritores os que propuserem mudanças radicais?, 2ª) quem disse que os escritores são honestos? Como disse acima, os escritores são seres humanos. Portanto…
Cunha de Leiradella é prosador, autor de Apenas questão de método

Se a literatura muda a sociedade? Mas é óbvio que muda. Veja os publicitários (não estou dizendo os empregados, estou me referindo aos chefões), os ideólogos do neocapitalismo, os donos dos grandes conglomerados de comunicação: esses caras lêem Freud, Reich, Jung, Dostoiévski, Kafka, Huxley, Guatarri, aprendem tudo sobre psicologia e comportamento de massas e com esses conhecimentos manipulam as mentes de milhões de pessoas e asseguram a permanência de seus impérios. Faturam milhões de dólares, fabricam guerras para vender armamentos pesados e diminuir a densidade populacional, jogam o dinheirinho dos aposentados na ciranda financeira internacional e lucram horrores, lavam o dinheirão do tráfico de cocaína, de armas, de escravas brancas, de prostitutas, sem o menor pudor. Esses caras sabem que a literatura é capaz de mudar a sociedade. Não são burros. O que me espanta é o conformismo dos escritores. Parece que enquanto o mundo pega fogo os poetas brincam de Barbie. Os bandidões que controlam o fluxo planetário de capitais sabem que a literatura é capaz de mudar a sociedade. Os escritores acham que não. Ganham apenas dez por cento de direito autoral (quando recebem) e acham que as regras do jogo são assim mesmo. São humilhados pelos livreiros, pelos editores, pelos críticos, mas se sentem gloriosos se a Folha de S. Paulo ou O Globo publicam quarenta linhas elogiosas sobre seus livros mais recentes. Não raciocinam, parece, em nenhum momento, que seus suores noturnos e solitários geram lucros e empregos. Imaginem tudo que Van Gogh sofreu para criar sua própria linguagem. Morreu fodido, louco e sem uma orelha. Hoje, seus quadros estão nos cofres de banqueiros escroques e de milionários escrotos. Esses filhos das putas sabem o valor de uma obra de arte contundente. Os ideólogos da comunicação de massas sabem o impacto da linguagem. Uma coisa é um atentado suicida no World Trade Center. Outra coisa é ele ser transmitido ao vivo para todo o planeta. Filmado, fotografado e reproduzido incessantemente. Isso é linguagem. Mas os escritores acham que a literatura não modifica a sociedade. Que esquisito!!!
Ademir Assunção é poeta, autor de Zona Branca

Acredito que a literatura pode iluminar o ser humano e, assim, ajudá-lo a propor mudanças no agrupamento do qual faz parte. Claro, hoje, numa sociedade movida pela ditadura da imagem, essa frase pode parecer ingênua ou pretensiosa (dependendo de quem a lê), mas, como alguns “formadores de opinião” ainda lêem, talvez possamos relativizá-la. Eu não escrevo propondo mudanças radicais. Aliás, não acredito em literatura que proponha coisa alguma. A literatura não deve ter nenhum compromisso, a não ser com a Humanidade. Eu escrevo para questionar o meio onde vivo, uma sociedade extremamente injusta, corrupta, acomodada, covarde e mesquinha. O que desejo é que todos tenhamos emprego, plano de saúde, residência fixa, esposa e filhos. Portanto, não vejo qualquer contradição entre a maneira como vivo e o que penso e a literatura que faço.
Luiz Ruffato é prosador, autor de Eles eram muitos cavalos

A emancipação do espírito que buscava Brote através do Surrealismo tende a soar como algo erradicado quando nos deparamos com o comportamento de uma gritante maioria do que hoje identificamos como sendo os artistas em nosso tempo. Não sei se isto se dá propriamente pelos apelos de uma sociedade devorada pelo consumo. Tampouco estou certo de que hoje se verifica com maior incidência o que se poderia chamar de desvio de caráter. O que temos agora é maior evidência. A sociedade não se modifica, em qualquer sentido, se antes não se modifica o homem. Somente modificando o homem é que a arte modifica a sociedade. A resposta a tua pergunta é naturalmente negativa, ou seja, nenhuma forma artística tem o poder de modificar a sociedade. A mudança que pode provocar no homem é no sentido de lhe fazer reconhecer-se parte de um todo, e pautar a existência por essa íntegra relação com o outro. Aplica-se aqui aquele sentido do religioso que Juan Eduardo Cirlot dizia faltar em Brote, por exemplo. Não temos mais propriamente uma sociedade burguesa e sim uma sociedade desenfreadamente regida pelo consumismo. Facilitar o fluxo crescente da marginalização é tão fora de propósito quanto é repugnante a maneira como a arte se deixou acomodar a um plano de espetacularização do ser. O grande obstáculo me parece estar relacionado com a ressonância, a forma de se contrapor aos mecanismos instalados pela sociedade contemporânea. E naturalmente a audácia que isto requer não está a depender do artista ter ou não residência fixa ou plano de saúde.
Floriano Martins é poeta, autor de Almas em chamas

Deixe-me citar um trechinho de Literatura européia e Idade Média latina, de Ernst Robert Curtius: “Os gregos encontraram num poeta o reflexo ideal do seu passado, de sua existência, do mundo dos deuses. Não possuíam livros sacros nem castas sacerdotais. Sua tradição era Homero. Já no século VI era um clássico. Desde então a literatura é disciplina escolar, e a continuidade da literatura européia está ligada à escola.” Em O arco e a lira, Octavio Paz também mostra que o poema, sendo histórico — porque cada obra é escrita em uma circunstância, um contexto —, faz história, pela influência sobre outros autores, reaparecendo em seus textos, e por produzir ideologia, representação do mundo. Se a consciência, a sociedade e o mundo são produtos da linguagem, então a operação do poema, a criação e transformação da linguagem é a transformação do real, ou, ao menos, da consciência da realidade. A civilização grega é um produto da épica de Homero. A romana, de Virgílio. A cultura lusófona, principalmente de Camões — assim como sua modernização deve a Fernando Pessoa. Mesmo em uma sociedade aberta e fragmentada como a nossa, literatura ainda tem esse papel criador. Continua capaz de se projetar no tempo e de fazer história. Então, literatura, aceita essa argumentação, não transforma a sociedade: faz a sociedade. Isso fica menos evidente em sociedades iletradas como a nossa. Você me pergunta se o escritor que não crê que seus livros sejam capazes de mudar a sociedade é alguém comodamente posicionado na mesma sociedade que, em contrapartida, denúncia nos livros. Não vamos confundir a pessoa do autor com os efeitos de sua obra. Em literatura tem de tudo. A obra transcende o autor. Se não, não precisava ler o livro, era só ir conversar com o escritor. Repito: criação literária não é militância partidária, nem ordem religiosa. Não vamos simplificar relações entre autor e obra, de modo determinista.
Claudio Willer é poeta, autor de Anotações para um apocalipse

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho