Imagine um bar. Imagine uma mesa vazia nesse bar imaginário. Imagine vários escritores sentados à mesa antes vazia desse bar imaginário. Imagine-me em casa, relendo alguns textos dos artistas do começo do século 20, mais especificamente do grupo surrealista de Paris (década de 20), e cotejando-os com os da geração beat (década de 50). Imagine-me agora no bar, entre um chope e outro, provocando os escritores presentes com as seguintes questões:
A literatura (e toda as formas artísticas, por extensão) tem o poder de modificar a sociedade? Se a resposta for “sim”, dê um exemplo claro em que uma obra literária, ou um movimento artístico, modificou uma sociedade. Se for “não”, então o que é o escritor? Alguém comodamente posicionado na mesma sociedade que, em contrapartida, denúncia em sua obras? Noutras palavras: alguém habituado a cuspir no prato em que come? Tanto os surrealistas quanto os beats propunham menos uma nova arte e mais uma novo modo de vida. Por isso sua rotina não era a da sociedade burguesa. Hoje, isso não existe mais. Todos temos emprego, plano de saúde, residência fixa, esposa e filho. Em que medida, estamos sendo honestos ao propor, em nosso textos, mudanças radicais, sem que estejamos dispostos a pô-las em prática em nosso próprio dia-a-dia?
É evidente que a arte, de forma geral, tem o poder de modificar a sociedade. Mas tais mudanças não são, em absoluto, imediatas: o efeito é cumulativo, lento mas crescente. Não me recordo de um caso específico em que uma obra literária, por si só, tenha modificado o mundo. Talvez seja ocasião de lembrar do Werther, por exemplo, que causou uma onda de suicídios, mas não uma revolução de costumes. O caso que me ocorre, pela proximidade com a recente perda que tivemos, é o dos Beatles, que influenciaram uma geração inteira: ainda em vida, eles puderam ver o rebuliço que causaram. A literatura não comparece servindo a nenhuma causa imediata, portanto. O autor quer primeiro salvar seu mundo e a si mesmo. Depois, bem depois, ela salva indivíduos, casos particulares, que podem vir a ser agentes de mudanças. No mais das vezes, ela, a literatura, é espelho do mundo e devolve o indivíduo a ele mesmo. E isso já é o bastante… Os tempos mudaram, e são tristes. Numa época de propostas radicais, como a do surrealismo e a dos beats, a vida deveria ser igual à literatura, ou o contrário, pouco importa. Nós já fomos bicho-grilo, já fomos contra o sistema, já fomos tudo o que tínhamos direito de ser e a ingenuidade permitia. Não creio que a rotina da sociedade burguesa (digamos que o clichezão ainda nos sirva) anestesie corações e mentes. As mudanças não dependem de ter ou não ter família, de contestar ou não modelos, de, obrigatoriamente, quebrar ou não paradigmas (expressão tão cara nesses tempos de som e fúria). O autor, sabe-se hoje, é um sujeito normal, que paga contas e vai ao supermercado. Existe nele, isso sim, o olhar desviante: um desvio que não necessariamente se aplica ao que veste e aos lugares que freqüenta. Ninguém mais propõe mudanças radicais pela via da literatura. O que os autores propõem, mais do que nunca, é a postura solidária em relação ao próximo. Compreendeu-se, finalmente, que a arte não tem caráter utilitário, que não deve ser bandeira de coisa nenhuma. Basta-se a si, a arte. O que ela faz e tem feito ao longo do tempo é devolver o humano ao humano. Cabe ao escritor fazer literatura da boa, e nisso, e em nada mais, reside a grande revolução.
Cíntia Moscovich é contista e romancista, autora de Anotações durante o incêndio
O que é a “realidade”? Tempo é algo abstrato, concebido pela mente. O espaço é percebido pela visão e, em menor grau, pela audição e pelo tato. Tempo, espaço e movimento, sujeito e objeto formam o que imaginamos ser a realidade. Para quem sofre de cegueira, porém, as percepções são diferentes: o tempo é quase irreal, e as distâncias são compreendidas com o auxílio dos ouvidos e das mãos. Quando dormimos, esquecemos quem somos e o que é o mundo; algo similar ocorre na amnésia e na loucura. No sono profundo não há percepção de formas: não há altura, largura, volume ou profundidade. E é provável que, na morte, tais noções se desarticulem por completo. A realidade, assim, é uma construção subjetiva, não tem existência própria, pois depende dos sentidos e da mente. Tudo é um sonho coletivo que muda o tempo todo. Em nossa própria consciência cotidiana, as coisas não são o que aparentam: nada é estático, nada permanece igual a si mesmo, tudo se altera, se transforma em outro, numa contínua metamorfose. As células do corpo nascem e morrem, a compleição muscular se altera, até os nossos pensamentos mudam. Essa constante mutação é a única coisa que não muda na matéria; é o único “real” que podemos apreender. E os meus poemas, claro, refletem essa eterna metamorfose, participam desse jogo cósmico. A poesia é uma forma de pensamento. Quando o poeta muda a linguagem, ele age sobre a consciência: mudar as relações entre as palavras é alterar a nossa atitude junto às pessoas e ao mundo. Por que é assim? O idioma, regido pela gramática, tem uma lógica própria, que define não apenas a nossa forma de ler e escrever, mas também o nosso modo de sentir, pensar e agir. Todos nós somos aristotélicos, pelo uso que fazemos do idioma. Porém, ao criar outra lógica verbal, outra sintaxe, diluindo e alterando as funções normais de sujeito, ação verbal e objeto, o poeta cria uma nova visão de mundo, altera a realidade. Agora, claro, o artista não pode ter pleno domínio da mutação, pois não está sozinho no jogo: há outros parceiros de tabuleiro, outros adormecidos sonhando este sonho, e da interdependência de ações da mente, da palavra e do corpo de todos nós erigimos essa imensa alucinação ou pesadelo que é o mundo.
Claudio Daniel é poeta, autor de A sombra do leopardo
Arte é uma necessidade vital do ser humano (quiçá biológica) de representação do mundo. Mas qual o lugar da arte no mundomercado? Heidegger já advertia que a Técnica havia condicionado a mentalidade e o modus vivendi do homo faber. Essa concepção de progresso técnico alcançaria até a dimensão estética, ocasionando rupturas cíclicas entre o fazer artístico e a incorporação de seus produtos ao repertório da tribo — idealmente, o usuário final do inutensílio. Porém, no mundo regido pelos valores produção/produtividade/eficiência máximas, a inutilidade da arte é patente. O mundomercado já oferece sucedâneos para ela, produtos de fácil assimilação, capitulados sob o rótulo de “entretenimento”. Entretanto, mesmo eclipsada pela pletora universal de mercadorias, a arte sempre poderá propiciar reflexão, prazer e proveito, mas seu poder de modificar a sociedade é zero. O preço do pão tem prioridade sobre quaisquer biscoitos finos (ainda mais nesta nossa tribo, onde os tecnocaciques da educação houveram por bem “racionalizar” o ensino, descartando a filosofia e a sociologia do currículo — e cogitam agora abolir também a literatura). Nesse quadro sombrio, “estudo em negro”, como conciliar arte e vida? Essa é a contingência pessoal de todo artista, desde o primeiro pintor de bisontes em Lascaux e Altamira. Na pós-modernidade, sem utopia nem mito transcendente (“o nada que é tudo”), a função inelutável do artista permanece a mesma: dar seu testemunho, do mesmo modo que uma figueira dá figos. Consciente da tecnobarbárie deste tempo, da provável emergência de convulsões telúricas — em reação à praxis desastrosa do racionalismo técnico —, da insustentabilidade de um modelo de produção/predação que esgota recursos, flagela países e gera legiões de desvalidos. Essa conjunção de fatores (irredutíveis à vontade de potência do homo faber), poderá obrigar a uma mudança de rumos, num futuro que só um escritor de “anticipation” seria capaz de vislumbrar. Entrementes, os áulicos da deusa Técnica propalam, jactanciosos, como vão terraformar o planeta Marte.
Luiz Roberto Guedes é poeta, autor de Calendário lunático.
A relação entre literatura e sociedade esteve sempre marcada pela ambigüidade e pelo estranhamento, desde o aedo grego ao moderno escritor de best seller. Mesmo quando pretende representar o real (mímesis) a literatura trai seu objeto, criando mundos paralelos. Por outro lado, ainda que o texto literário seja tomado como manufatura (poíesis) não há como camuflar suas implicações históricas, seu enraizamento problemático no tempo social. A literatura não tem a função de mudar a sociedade, senão se torna mero panfleto. O papel subversivo da literatura está na manipulação criativa da linguagem, trata-se de uma ação transgressiva subterrânea. A vida do escritor não tem, ou não precisa ter, nada a ver com sua obra. Mallarmé, Kafka e Joyce tiveram vidas medíocres, no entanto realizaram obras revolucionárias. Quando decidiu viver intensamente, Rimbaud parou de escrever. Pound é um dos pais da poesia moderna, porém foi preso por apoiar o fascismo. Já Maiakovski suicidou-se na sociedade revolucionária que ajudou a forjar e com a qual sua poesia supostamente se identificava. Quantas obras-primas não foram criadas para quitar dívidas, de Edgar Allan Poe a Dostoievski?
Reynaldo Damazio é poeta e ensaísta, autor de Nu entre nuvens
Se a literatura tem o poder de modificar a sociedade? Sim, se pensarmos no que a Bíblia e o Alcorão têm propiciado à humanidade, per omnia saecula saeculorum — na minha opinião, dois livros não mais do que ficcionais, em que alguns trechos são muito bem escritos e outros, pessimamente redigidos (falha, certamente, de seu editor). O fato é que nem todo escritor denuncia a sociedade (denúncia tem por si caráter de queixa-crime). Muitos simplesmente se contentam em mascara-la. Ou em esconder seus excrementos com um vasinho de flores. Outros atiram os ditos dejetos ao ventilador e ligam o aparelho na velocidade máxima — o que também não chega a ser salvo-conduto para a qualidade literária, a posição ética ou a revolução social. Se você pergunta: “Mas o escritor é um sujeito que observa a realidade de cima, e foda-se?”, respondo com meus contos Y (dos Dez presídios de bolso), Conto e Relato entre machado e faca (de Os infernos possíveis). Está ali o que penso sobre a relação entre vida, literatura e exclusão/inclusão social. Você citou os surrealistas. Lembro-vos que os surrealistas ou foram tragados pela burguesia que condenaram (vide Dali e, exagero, Breton) ou morreram (alguns jovens, como Lautréamont — que considero um autor surrealista avant la lettre —, que também não deixava de ser um burguesinho). Talvez a questão não seja simplesmente escolher entre a forca e a poltrona. Pessoalmente, essa pergunta me lembrou a abordagem que certa vez me fez um editor: “Quero lançar seu livro. Você tem pinta de autor maldito”. Respondi: “Como assim, maldito? Como pode ser maldito um sujeito que paga aluguel, comprou seu carro financiado e tem emprego fixo?”. Ele respondeu: “É que você só usa roupas pretas…”. Ou seja, maldito para ele era meramente questão de imagem, ou de marketing. Por falar em marketing, prossigo o depoimento pessoal explicitando por que, aos 17 anos, entrei na faculdade de Propaganda e não na de Letras. Quando fiz essa opção, além de obviamente pensar no meu sustento, cavilava também que essa faculdade me proporcionaria uma entrada imediata na máquina que almejo um dia destruir. Alinho-me, portanto, aos escritores que propõem a subversão por dentro — a literatura como um vírus de computador. A questão proposta passa também pela crise das utopias. Os beats e os surrealistas ainda viviam a utopia política do comunismo ou a do anarquismo. O século 20 derrubou as duas tanto como as torres gêmeas trouxeram abaixo o capitalismo utópico. Não há portanto que se negar, simplesmente, a unidade familiar ou o sistema político ou a sociedade de consumo, e ter como pasárgada uma sociedade alternativa neoludita no meio do mato, pois essas convenções colonizaram nosso inconsciente. O papel que nos cabe, ou, pelo menos, em que caibo eu, é de se enfiar no meio dessa macroestrutura e interferir na paisagem com bugs literários. A verdadeira subversão vem de dentro.
Ronaldo Bressane é contista, autor de Dez presídios de bolso
Antes de responder, quero dar uma olhada nas premissas da pergunta. Quando Nelson indaga se “a literatura tem o poder de modificar a sociedade”, parece supor que literatura e sociedade sejam coisas distintas, separadas. Mas os livros fazem parte das práticas sociais. Nessa linha, eu diria que a sociedade modifica a si mesma, e a literatura, o cinema ou a música pode acelerar e às vezes emblematizar essas mudanças. Mas Nelson de Oliveira pede à literatura, com razão, que tenha dimensão utópica. Reitero: a meu ver a literatura pode, sim, mudar comportamentos e mentalidades. O surrealismo investiu contra o cartesianismo na pátria de Descartes, a França. A geração beat atacou o puritanismo, a rapacidade, a caretice norte-americanas. Ocorre que as vanguardas também têm seu ciclo, nascem e morrem como tudo o mais. Algo do que é reivindicado pelos movimentos revolucionários se incorpora de alguma forma, direta ou obscura, a nossos hábitos, e a ordem afinal se restabelece. O que não deixa de ser uma espécie de círculo infernal, já que certos ideais de felicidade e de liberdade jamais foram alcançados, desde os gregos… De fato, no Brasil e no mundo ferozmente reacionários em que vivemos hoje, o espaço da utopia tende a se restringir muito. Mas a literatura não se liga só a seu momento histórico: ela se destina a enriquecer o acervo mental de um povo, ou dos povos. Você pode escrever o Manifesto do surrealismo, mas, se puder tão-somente deixar o Soneto de fidelidade ou o Caso do vestido, terá dado igualmente um belo presente à humanidade. Hoje, a literatura parece ter o seu poder de fogo reduzido a isto: a capacidade de melhorar o mundo por torná-lo menos feio e menos mesquinho.
Fernando Marques é poeta e ensaísta, autor Retratos de mulher
No próximo Rascunho, saiba o que pensam a respeito os escritores Marcelino Freire, João Anzanello Carrascoza, Sérgio Fantini, Jorge Pieiro e outros.