Arte da interrupção

Os poemas de "Pequenos reparos", de Omar Salomão, se oferecem como vias de afetos em meio à agitação cotidiana
Omar Salomão, autor de “Pequenos reparos’
29/04/2018

Em entrevista recente, publicada aqui no Rascunho, Milton Hatoum, ao demonstrar pouco interesse em precisar o gênero de seus escritos, optando antes por chamar seu texto de narração do que de romance, sugeriu que no romance “cabe tudo”.

Em Pequenos reparos, de Omar Salomão, notamos a insinuação de que, se no romance cabe tudo, da poesia sai tudo. Num dos tantos desenhos rabiscados que aparecem no livro do jovem poeta carioca, misturados aos poemas, recortes, fragmentos de imagens e escritos, entre outros traços, vemos a palavra poesia no centro de uma constelação de setas que apontam para fora e encontram substantivos como “objeto”, “ilustração”, “música”, “prosa”, “foto”.

Por mais que encontremos em Pequenos reparos metapoemas com bonitas imagens sensoriais, caso do poema que começa com “eu escrevo no escuro para não te acordar”, é nesse desenho-constelação com a palavra poesia no centro irradiador que Omar Salomão parece oferecer uma possível chave de leitura para seus escritos. Porém, ao nos demorarmos um pouco nos poemas, percebemos enfim que a chave indica justamente a ausência de arquiteturas a serem reduzidas ou perseguidas no livro. Este se revela tão potente índice de uma dada poesia contemporânea que nos ajuda a compreender uma característica fundamental dos escritos poéticos contemporâneos: a arte da interrupção.

Os primeiros poemas levam o leitor a acreditar num desejo de haicai, devido não apenas à brevidade dos versos, mas também à sugestão contemplativa dos mesmos. Eles, os poemas, mostram coisas que se deixam ver. Mas não, como bem ensinou Ferreira Gullar, porque existem para serem contempladas, e sim porque damos a elas essa condição de existência ao nos colocarmos diante delas em estado de quietude. “o rio ainda é rio/ e o tempo não vira/ não muda, transforma”, escreve Salomão no poema de abertura.

Essas pistas de minimalismos e espírito de haicais com que se inicia o livro harmonizam-se com os escritos do dançarino japonês Kazuo Ohno que o poeta carioca escolheu para abrir e fechar o livro. Nos dizeres do artista japonês recortados por Salomão há a ideia de que o “tudo” esteja em algo que é “apenas” (ou seja, um evidente chamamento para a simplicidade). Essa leveza sugere algo ao espírito do leitor que tentará lidar com os fragmentos em reparo no livro. Tudo parece convidar pro menos. Por isso talvez o desenho do poeta tenha sido feito com as setas para fora, como sugerindo que aquelas substâncias estejam antes saindo do que entrando no poema, porque nele, no poema, podemos até encontrar os vestígios das coisas evocadas do mundo… mas que sejam apenas isso, vestígios.

Por isso afirmo ser a arte desse livro e da poesia contemporânea algo como a interrupção, porque a opção do poeta nesse caso, como em tantos outros que temos visto publicados na cena atual de nossa poesia, parece consistir em colocar matérias significantes em movimento para que num instante preciso de sensibilidade se interrompa o fluxo para fazer surgir o efeito estético de inacabamento, de reticências, de hesitação que geram beleza porque são tentativas de silêncio.

Não à toa, Salomão conversa com um dançarino japonês. A expressão poética japonesa mais conhecida no Brasil talvez seja aquela do mínimo, do haicai. E se esse haicai for escrito com o corpo, caso da dança, melhor ainda, porque é menos.

Via de afeto
Outra imagem recortada para o livro e que corrobora a chave da interrupção como estratégia poética é a imagem da página 53. Nela, vemos uma passagem, como se num papel rasgado, extraída de um texto em que Antonin Artaud reflete acerca do corpo e da linguagem. O que poderia aparecer como citação aparece como apropriação, como se quem lesse o trecho de Artaud agisse impulsivamente querendo apoderar-se da materialidade com medo de perdê-la, ou melhor, de perder o instante. O modo como esse trecho surge no livro revela que há mais naquela página rasgada, mas que o fluxo foi interrompido no momento em que os dizeres do autor abriu uma via de afeto.

Os poemas de Omar Salomão se oferecem assim, como vias de afetos. Estejam estas numa página de livro em curso, no rabisco de um caderno, numa fotografia esquecida, papel amassado, objeto esquecido, num quadro… ou mesmo num poema, como já fez tão bem Ana Cristina Cesar.

No entanto, como poço de contradição que é a poesia, poemas em prosa com pretensões aparentemente filosóficas, como os das páginas 18 e 81 (coincidência?), destoam no livro por romper com a plasticidade e até mesmo com a arte de interrupção estética do fluxo significante que marcaria a poética do livro. Não são poemas ruins, mas são textos que não fazem ver. Talvez por isso sejam pontos de desequilíbrio em Pequenos reparos. Não de um desequilíbrio que deponha a favor da estética, antes, um desequilíbrio que revela excesso apenas. Dois pontos sem reparos.

Para um leitor de palavras muito mais do que de imagens como eu, o ponto alto do livro está na elaboração do poema que se inicial com o verso “corre um rio”. Nele, podemos ver, não apenas pela temática, mas sobretudo pela espessura da linguagem, que há em Omar Salomão um poeta que, como sugeriria João Cabral de Melo Neto, exercita a mão para não pesá-la em demasia e romper, com isso, a teia em momento precipitado. A precisão desse poema traz o que de melhor o livro reúne em palavras. É bonito. É bom lê-lo:

seu tempo é outro
é o espelho e o oposto
é rio e não é
é fio de lâmina
faca arrastando-se
quilômetros abaixo
léguas abertas ao largo

É claro que lembra João Cabral. E, não fosse esse feliz encontro, eu diria que Pequenos reparos entrega à poesia de hoje o que ela já é, artifício de interrupção. Mas, com esse preciso poema, vemos que, apesar da confirmação estética que não manda o recado da diferença à poesia contemporânea, Salomão soube abrir, em meio à estética da interrupção, uma linha de afeto com outro tempo, o tempo de João, que nos deixou a herança da espessura da linguagem.

No entanto, Pequenos reparos não cumpre seu papel com a poesia de nosso tempo apenas porque nos leva a outro poeta (de outro tempo), mas também porque faz aparecer a contradição do estado de quietude em tempos de velocidade e barulho. Os traços misturados de diferentes linguagens que Salomão nos oferece com esse livro podem não passar de tênues vestígios do que veríamos ou sentiríamos caso, desobedientes, incorrêssemos ainda no ato de contemplar.

Pequenos reparos
Omar Salomão
José Olympio
128 págs.
Omar Salomão
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1983. É poeta e artista plástico. Este é seu terceiro livro. Já publicou Impreciso (2011) e À deriva (2005). Uma marca de seu trabalho é o entrelaçamento de imagens com palavras.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho