No mesmo dia em que esboço minha volta ao Rascunho, descubro sem querer o anúncio dos finalistas e semifinalistas, respectivamente, dos prêmios São Paulo e Oceanos de literatura. As coisas — as listas e o meu sumiço — me parecem interligadas.
Explico. É com imenso gosto que comento o que tenho lido dos autores brasileiros. Juro. No entanto, minha última resenha — Só faltou o título, de Reginaldo Pujol Filho — somada ao que vi ser indicado para as premiações citadas me levam a crer que 2015 foi um ano de crise também para a literatura brasileira. Sim, há nomes de peso. Capas bonitas. Elogios, sim — daqueles escritos na linguagem mais rebuscada, compreensíveis somente após a terceira leitura da obra em questão. Ou nem isso. Até a quantidade de títulos parece evitar pensar em crise, como recomenda o golpista.
Mas o que importa mesmo é o momento de virada: quando você deixa de sorrir e menear a cabeça — vinhozinho na mão, livraria cheia de figuras conhecidas, sim, claro que vou ler, será o próximo da lista — e realmente lê. E, combinando as duas listas, isso só me aconteceu com três livros, todos de poesia.
Quantos conseguiria recomendar? Apenas um — excelente, aliás: O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques. O único romance obrigatório — Operação impensável, de Vanessa Barbara — era inelegível por conta da edição não comercial que acompanhou o Prêmio Paraná de Literatura em 2014. [O livro acabou ganhando uma edição comercial em outubro de 2015 pela Intrínseca].
Daí o desânimo, daí o sumiço. Porque não é só ler — até o final, de preferência. É se comprometer, mostrar que entendeu, dar uma chance, explicar o que não funcionou. Vê-se logo que tem quem goste de provar a própria inteligência ao detonar um livro. Também há quem seja elegante no alerta ao leitor. Prefiro deixar a tarefa a essas pessoas e me abster de opinar sobre o que não gostei.
O que você quer saber de verdade?
Falar a verdade — ou, como dizem, “mandar a real” — não é do meu feitio. Pelo menos não na introdução das minhas resenhas (sabe aquela historinha recorrente sobre como descobri o livro por acaso na livraria? Geralmente é mentira — ainda que eu me obrigue a fazer o passeio logo após descrevê-lo, só para acreditar que aquilo podia ter acontecido de verdade).
Sim, muitas vezes começo uma leitura sem saber coisa alguma sobre a obra — sem ler orelha, sinopse —, mas nunca admito que quis lê-la porque, digamos, o autor é bonito. Ou porque ele tinha uma conta no Twitter legal de se seguir. Ou porque fizeram um gif da capa. Ou porque um amigo leu uma crônica dele e me disse que gostou. E, bem, foi esse o caso. Ou melhor: esses os casos.
E quer saber? Nenhum motivo é fútil o suficiente se o encaminha para um bom livro. Pode, sim, ler Bernardo Carvalho só porque sempre há um personagem homossexual em todos os livros dele e isso o faz se sentir menos sozinho no mundo — não precisa dizer que está avaliando as tendências pós-modernas na escrita do autor. Pode, sim, ler Elvira Vigna imaginando que suas narradoras são ninjas que não se cansam de distribuir voadoras na nuca do patriarcado.
“E o medo do ridículo, sr. Tertuliano? Onde é que fica?”, você me diz. E eu respondo: espero que no mesmo lugar onde Victor Heringer deixou o dele ao autorizar a publicação dessa longa carta de amor chamada O amor dos homens avulsos — sim, você está autorizado a pesquisar “como é mesmo aquele poema do Fernando Pessoa?”.
N’O Globo, o autor ganhou o epíteto de “ativista da ternura e do afeto”. Sim, o romance tem dor, loucura e violência descabida; em alguns momentos achei que uma situação culminaria em pedofilia e infanticídio — era apenas impressão. Mas, dito isso, ternura é o que sobressai. “Arte não se faz com bons sentimentos”, dizem. Não é o que sinto aqui — ou quando vejo “Steven Universe”, por assim dizer. Um romance adolescente, cuja duração não valeria tanto pensamento, é rememorado à exaustão na vida das retinas tão fatigadas do narrador e protagonista:
Meu Cosmim foi perdendo os traços ao longo do tempo. Já não lembro bem como era o seu rosto, só umas linhas gerais, uns nacos requentados milhões de vezes na imaginação: a cara de quando ele provou limonada sem açúcar, a retorção da primeira vez. Um sorriso cansado em fim de pelada. Sobrancelhas em ponto morto numa tarde de tédio. Os olhos predadores perseguindo a Joana. A solidariedade na boca ao me ensinar como gozar… Lembrei tantas vezes essas lembranças que agora o que eu vejo não é mais a cara de carne e cartilagens do meu amigo, mas uma imagem desgastada, soterrada embaixo de catorze mil rememórias. (…) Que falta faz uma foto.
E não é isso — ternura, bons sentimentos — o que se aprende a esperar de um escritor contemporâneo brasileiro. Como assim ele não reescreveu o protagonista masculino médio, aquele anti-herói (uma palavra que se convencionou ser preferível a “babaca”) bem brasileiro, que uma porção de gente tem se esforçado em reinventar — e sempre soa parecida? Não falaram para ele que é de praxe borrifar testosterona nas páginas, como um comercial do desodorante Old Spice?
Sim, há mais no romance que bons sentimentos. Antes dele, li o Automatógrafo — livro de poemas mais antigos (e juvenis) do escritor — e estava ciente do gosto do rapaz pela poesia. E isso é patente em O amor dos homens avulsos: é definitivamente prosa, não parece ambicionar a alcunha de “prosa poética”, mas reverbera poesia. Poesia estilo Angélica Freitas, Ana Martins Marques, Drummond, aquela que você nem colocou terno para ler e é.
O autor também recheou a história de fotografias, desenhos, variações tipográficas — gostei muito de um solzinho feito de vírgulas que aparece de quando em quando. Mais do que uma forma de chamar atenção para o fazer artístico, esses elementos ajudam a compor um protagonista preso ao passado, alguém tão cheio de memória que cuidava de uma lojinha de antiguidades.
Eu, você e todos nós
No entanto, o que mais me tocou é o que vem após a frase “Amei o Cosmim como você amava o seu primeiro amor, que se chamava (…)”. Assim como em Exorcismos, amores e uma dose de blues, Eric Novello usou uma cena de amor para dividir as metades do romance, Victor Heringer também pôs o sentimento no cerne de seu último lançamento.
O diferencial: ele criou um site e pediu às pessoas que nele escrevessem seus nomes e os nomes de seus primeiros amores. E todos eles foram citados no livro: quatro páginas dessas citações, belamente costuradas numa declaração de amor do narrador ao Cosmim. Tinha tudo para ser apenas uma brincadeira de “encontre seu primeiro amor e pule quatro páginas”, mas recomendo acreditar no “belamente costuradas” da frase anterior.
Peguei-me conversando com um amigo sobre o capítulo. Enquanto alguns mandaram nomes de amores de jardim de infância — “Arthur amou Andréia” —, outros enviaram nomes de quando já entendiam melhor a complexidade do sentimento — “e Daniel amou Gustavo”. E esses são apenas dois exemplos em quatro páginas repletas deles.
Esse movimento, numa época em que o cinismo parece ser o modus operandi recomendável para a sobrevivência, me desarmou como leitor. Enquanto eu esperava o momento em que abandonaria mais um exercício de estilo, mais um estudo de personagem disfarçado de romance, encontrei no livro um companheiro da visão de mundo que partilho no momento.
Enfim, sei que não é culpa do romance, mas desde que o li 2016 começou a tirar o gosto de crise da literatura contemporânea brasileira. Logo após devorei o novo (e excelente) título de Elvira Vigna —Como se estivéssemos em palimpsesto de putas — e já comecei os Homens elegantes, de Samir Machado de Machado, que chega cercado de altas expectativas.
Ano que vem, pelo visto, voltarei a ter por quem torcer nas premiações literárias. E talvez eu não suma tanto.