Nélida Piñon é uma verdadeira celebridade da literatura brasileira. Não bastassem as quase duas dezenas de livros lançados em mais de 40 anos de carreira, os cinco títulos de doutora honoris causa concedidos por universidades estrangeiras e a badalação a que é submetida sempre que participa de eventos culturais (como na recente inauguração da livraria Fnac em Curitiba), ela ainda se sagrou a primeira mulher presidente da Academia Brasileira de Letras. A longa lista de loas, no entanto, não faz justiça ao total de reverências recebidas pela escritora carioca sempre que aparece com alguma novidade. Natural, portanto, a agitação em torno do lançamento de seu novo romance, Vozes do deserto.
Coincidência ou não, o fato é que as coisas do Oriente estão na moda. Baixa temporada, é certo, mas ainda colhendo os louros da trama global O Clone, aquela protagonizada pelo casal Jade e Lucas. Mais ainda, porque os telejornais diariamente despendem boa parte de seu tempo para discussões sobre os conflitos nos territórios de Iraque, Israel, Palestina e cercanias.
É justamente a esse universo de tradições ficcionais que a autora recorre para ambientar seu novo romance. Mais do que isso, é dessa tradição que nasce o argumento para a trama de Vozes do deserto, em que Nélida se apropria do já tão explorado universo de Scherezade e de As mil e uma noites para compor sua história.
As personagens da acadêmica carioca são reproduções da tradição recuperadas em sua plenitude — sem serem pervertidas, alteradas ou mesmo sem a inserção de qualquer inovação. Evidentemente, por se tratar de uma apropriação e do transporte do imaginário oriental para o nosso, do outro lado do mundo, algumas “adaptações” foram necessárias. Caso contrário, não entenderíamos muito do comportamento das personagens, pois o trânsito entre as culturas é limitado e pouco compreendemos daquele mundo. As diferenças culturais, afinal, apenas são de fato experimentadas e interiorizadas quando da imersão do sujeito em uma cultura que não a sua materna; por não sermos iniciados na cultura oriental, algumas praxes sociais se perdem no trajeto. O que a autora promoveu em sua narrativa ficcional, foi, portanto, um processo de ocidentalização da tradição árabe. Assim, o que poderia ser em sua origem tão gritante aos nossos olhos, ressaltando-se disparidades culturais, tomou vestes tupiniquins.
Por outro lado, apesar da vinculação com a cultura oriental, esse é um texto que já se descolou daquele plano inicial. Recuperar um clássico como esse, que já tem vida própria (já que os contos narrados por Scherezade já se desvincularam do corpo de As mil e uma noites para habitar o imaginário popular universal, sem estarem restritos à cultura que lhes deu origem), é, por certo, um grande desafio. Ora, pois, quem não conhece as histórias de Ali Babá e os quarenta ladrões, da celebérrima frase “abre-te, Sésamo”, ou o príncipe Aladim e sua lâmpada mágica? Não é preciso ser versado em letras árabes para dominar esse mundo ficcional. Então, parece que para mexer nesse vespeiro há que se ter algo a dizer: uma releitura, uma adaptação, um estudo psíquico, uma montagem dramática. Enfim, algo que incite a curiosidade do leitor, o desejo, ou minimamente a identificação e a fruição estética; algo que ouse ou brinque com o que já está posto.
Contudo, não é o que se vê em Vozes do deserto. A obra não se propõe a nada, não tem um fim em si, nada discute, nada apresenta, e ninguém poderá dizer que se basta pela linguagem — ou, se quiser, terá de rebolar. O texto se arrasta, e mais parece um exercício de técnica narrativa em que se pretende explorar ao máximo certo mote. E a partir dele, paráfrases e mais paráfrases se amontoam por cerca de (infinitas) 350 páginas.
Curioso observar que, apesar de o título do romance apontar para a “sonoridade” daquilo que é eminentemente silente, o deserto (ainda que esse paradoxo se mostre rico no que tange à vida que fervilha por aquelas bandas, que pulula em crenças, mitos, histórias e tradições), as personagens não têm voz. Tudo chega a nós por meio do narrador, que, sem conceder espaço aos personagens, ainda os alija da voz em prol de si mesmo — ele domina todas as ações e pensamentos dos participantes da trama e conhece tudo que rodeia seu universo.
O narrador de Vozes do deserto pressupõe o prévio conhecimento da trama, e quaisquer esclarecimentos a esse respeito são parcos. Para quem ainda não está familiarizado, a tradição oral carregou até o século 18, quando foi pela primeira vez compilada, a história do Califa, soberano de Bagdá que surpreende sua esposa sendo possuída por um escravo negro e deleitando-se com a potência do rapaz. Indignado, o Califa manda matar todos que se envolveram com o caso: a esposa, o escravo e os criados que ajudavam Sultana. A partir disso, resolve vingar-se da libido feminina, e a cada noite casa-se com uma virgem, para depois da noite de núpcias entregá-la ao carrasco para a morte. Scherezade se compadece do destino das noivas do soberano e, pretendendo conter a sua sanha vingativa, apresenta-se para se casar com o Califa. Herdeira de um notável dom para contar histórias, Scherezade, que aprendera a arte com sua mãe e a aperfeiçoara com sua criada Fátima, busca na realidade os elementos que irão compor as teias para seduzir o Califa. Noite após noite, depois do coito, o encanto. Scherezade passa horas a contar histórias que, encadeadas, atiçam o interesse do Califa, que lhe concederá mais um dia de vida, e mais um, e mais um e assim indefinidamente. Os contos árabes sobrevêm da tradição oral, e são perpassados por crueldades, violência e sensualidade. Somente esse último elemento, porém, foi recuperado pela autora carioca.
Ganharíamos mais, como leitores ocidentais, na construção de novas histórias por Scherezade, como se a narradora de língua de mel nos incluísse em seu séquito de ouvintes e nos seduzisse também com seus envolventes contos. Vozes do deserto, infelizmente, trata apenas de nos contar o que Scherezade pensa do Califa, seus medos, suas relações com as criadas e com a irmã, algumas reminiscências e outras bobagens. Não é uma boa pedida para quem se interessa pelas aventuras de Ali Babá, do marujo Simbad ou de outros heróis do gênero.
A narrativa é excessivamente linear. Não há momentos muito ruins, tampouco muito bons. Assim, contentar-se com um texto mediano é um requisito para a leitura dessa obra, que não condiz com o laureado currículo da autora. Não há peripécias, clímax, tensão ou qualquer estratégia para envolver o leitor. Scherezade se saiu muito melhor nessa tarefa, talvez porque, ao contrário de Nélida Piñon, sua vida estivesse em jogo.
Tendo em vista o aberto diálogo com As mil e uma noites — narrativa que é marcadamente temporal, existe em um certo tempo, determinado, e já no título dá conta de explicitá-lo —, vale apontar, em Vozes do deserto, para a inexistência de qualquer marca de tempo, a não ser as absolutamente vagas, como em “aquela sétima viagem”, “nos últimos meses”, “naqueles dias” ou coisa que o valha. O recurso acaba por deixar o leitor perdido por entre os dias, incapaz de intuir se a sina de Scherezade (e a sua própria) está próxima do fim ou não.
A autora pode ter pretendido uma carta feminista, quase um panfleto. Os elementos estão presentes: Scherezade é uma mulher intelectualizada, decidida, independente e voluptuosa. Enfim, “liberada”. O Califa, apesar do poder institucional, é um homem fraco, ao passo que Scherezade é só segurança. Assim, não seria exagero dizer que a narrativa se delineia por um quadro de maniqueísmo, em que o Soberano é mau, porque não se interessa pelos seus súditos, vive entediado e gosta de matar mocinhas logo depois de desvirginá-las, enquanto contrapõe-se à mocinha Scherezade, que sai do seio de seu abastado lar, para, usando uma tática de benevolência máxima, seduzir o Califa de modo que ele desista de querer matar suas esposas e todos vivam felizes para sempre.
Aliás, sem saber ao certo o porquê, essa é justamente a última palavra da narrativa de Nélida “feliz”. Quando se refere à fuga de Scherezade, que abandona o Califa e vai ao encontro de sua criada Fátima, a boa contadora de histórias chega “poeirenta, faminta, mas feliz”, e fim.
No todo, a obra é tautológica, repetitiva, previsível e peca pela fragmentação exagerada dentro dos capítulos. A autora cansa o leitor com o iminente risco de morte a que corre a protagonista e as tediosas repetições de expressões, idéias, situações e todas as outras possíveis. A previsibilidade se impõe desde o inicio, vez que se propõe a aproveitar um texto de domínio público, mas, pior, ainda é capaz de frustrar o leitor que esperava encontrar na construção da linguagem um motivo para a existência do livro. A obviedade também incomoda, porque nada fica a cargo do leitor: tudo vem minuciosamente explicado, como que menosprezando a capacidade de leitura e apreensão do público. Além de constatações óbvias (como esta sobre Scherezade: “não fazia outra coisa que contar histórias ao soberano”) que aparecem quase na metade do livro, quando o leitor já está completamente familiarizado com as personagens.
O mote transportado é incansavelmente glosado, a tal ponto que dá para brincar — atenção, leitor desocupado — de buscar as inúmeras repetições existentes no texto sobre determinada situação. Pelo menos é divertido. Seguem algumas citações, sobre a morte de Scherezade: “Scherezade não teme a morte” (p. 7); “[o califa] Ergue as mãos para convocar o verdugo, mas olhando as três jovens suspende o gesto” (p. 44); “ele tem o poder de condená-la à morte” (p. 69); “após o Califa poupar-lhe a vida” (p. 95); “a morte iminente da irmã [Scherezade]” (p. 140); “Dinazarda esforça-se por salvar Scherezade…” (p. 179). A seguir, a incansável referência ao berço pobre da escrava Jasmine: “[Jasmine] Educada no deserto, em meio às ovelhas” (p. 83); “Ao contrário de Jasmine, que vivera na miséria…” (p. 84); “[Jasmine] Nascida no deserto” (p. 125); “a escrava recorda que nascera no deserto, aquecida pela miséria…”(p. 182).
Para não estragar a brincadeira, apenas mais três passagens sobre a desatenção do Califa ao califado por conta da presença de Scherezade: “A verdade é que o Califa vinha se desligando da administração do califado para viver em função da jovem” (p. 237); “Concentrado primeiro em Scherezade (…), o soberano abstrai-se da realidade que o Vizir esforça-se em apresentar-lhe” (p. 187); “Por tal razão [Scherezade] havia abandonado mais cedo o salão de audiências, deixara de sentenciar sobre o destino de seus súditos, desatendera às concubinas do harém…” (p. 100). Ainda restaram, para quem se interessar, o Vizir, que é o pai, e a irmã Dinazarda. Boa diversão!