Edson Cruz nos relembra, com o título de seu recém-lançado livro de poesia, que somos todos ilhéus: pequenas ilhas resistindo no mar revolto. Acidentes da natureza, solitários, indefesos contra todas as intempéries. Porém, Ilhéu assume muitos outros sentidos nas mãos habilidosas do poeta: é uma afirmação de suas raízes, diálogo e reflexo de várias influências contemporâneas, sentimento de abandono e desterro do homem contemporâneo, origem darwiniana intocada onde se pode encontrar a essência da humanidade.
Ainda na abertura, Thiago de Mello pondera que o livro é feito um vento morno da primavera, brisa suave e benfazeja que fecunda e frutifica. De fronte para seu rio, o grande poeta lê Ilhéu e conta que é possível colher palavras, despetalar versos, gravar os poemas de Cruz na madrugada da floresta: “na solidão, morremos todos/ sem alarde”.
E. M. de Melo e Castro também o prefacia, relacionando a arte da poesia ao nosso apego às dimensões da lembrança e do esquecimento (“Só os imortais não se esquecem.”), à mistura exata entre esses dois sob o farol da nossa existência. Lembra que a escrita é o produto da nossa capacidade única de reescrever o passado diante de representações imprecisas: no poema se inscrevem apenas alguns sinais da nossa vida, criada entre verdades e invenções.
Nessa viagem ao ilhéu baiano de Edson Cruz, singramos por entre seus cinquenta e três versos como Drummond, piratas penetrando surdamente no reino das palavras à busca de pistas e tesouros. E à moda de Roland Barthes — outro aventureiro das palavras — lemos levantando a cabeça, tecendo fios e costurando emoções, significados e sentidos.
Edson Cruz deixa pistas de si mesmo nas areias de sua ilha, de modo que observamos traços de sua origem grapiúna em diversas passagens, como em Vassoura-de-bruxa, “um menino arrancado/ de seu berço de sal e sol (…) no abraço concreto/ das noites frias do sul” e em Bibliotecas, “Minha mãe foi minha biblioteca./ Ensinou-me tudo./ Nunca saí dela”. Depois, Edson segue revelando os registros do fazer poético, os questionamentos da existência pensante, as ressonâncias da “agitação feroz e sem finalidade” da vida. O poeta exibe a dor intensa de rasgar palavras para encontrar sua essência, como em Rubrica: “Todo poeta precisa ser/ espancado” e também, em Suicídio: “Sou um animal désolé,/ um homem pensante./ Meu pensamento se transforma/ em garatujas. (…) Pensar é morrer a conta-gotas”.
Edson Cruz dialoga com o possível e o impossível, agradece “à dádiva absurda de ainda estar vivo”, lembrando que é preciso “não aspirar à vida imortal”, porém, esgotar o campo do possível, “viver o instante que nos redime e glorifica”. Para isso, presta homenagem a seus deuses, mira-se em titãs e reúne os mitos que admira: Thiago de Mello, E. M. de Melo e Castro, Laurinda, Paul Valéry, Fernando Pessoa, Hong Yan, Pelé, Píndaro, Drummond e tantos outros.
Por entre as palavras e silêncios de seus versos livres, fala a partir desse Ilhéu onde se encontra, de medo e coragem, de resistência e fragilidade, de um desejo infinito contraposto às nossas finitas possibilidades. Solitário e abandonado no território arenoso das palavras, suas mãos constroem vestígios repletos de significados, afinal “Somos rascunhos esquecidos/ dos hiperbóreos”. Como se construísse sambaquis, o poeta deixa marcas de sua passagem no mundo, registra sentimentos e imagens como fossem símbolos rupestres nas paredes tênues e alvas do papel, almejando que sejam encontrados e ressuscitados pelo leitor-arqueólogo de poesia.
Todo texto poético é inacabado, eis que o poeta não é Deus para controlar seus significados e amplitudes: por isso que os bons poemas são construídos como portas e janelas, permitindo visões, passagens abertas para o leitor ativo atravessar, manusear, descobrir, ressignificar. Edson sabe disso, compreende que o leitor só nasce a partir da morte do autor — ele que, como editor, é um leitor voraz e percebe que “Já não faz diferença quem disse./ Se foi eu,/ ou alguma crendice”.
Na solidão de seu ilhéu, Edson também entremeia seu discurso poético com mitologia grega, demonologia e angelologia, com aqueles entes divinos que povoam nosso imaginário e falam, arquetipicamente, da solidão eterna dos homens em sua profunda imperfeição: “cada criança que nasce/ é uma aposta/ de que ainda poderemos vir a ser/ humanos”.
Nessa leitura, profundamente emotiva e cúmplice, Edson Cruz me conta de um ilhéu, apesar de pequeno, recortado, imóvel na limitação intransigente de suas margens, e que almeja a eternidade do mar, a liberdade das marés; que estende seu litoral tentando abraçar o horizonte que o contempla, ascender aos céus para espalhar-se entre as nuvens, e encontrar a luz no farol supremo e eterno, do sol.
Compartilho esse ilhéu de Edson: durante a leitura, nas minhas margens encontro o alarido das marés em alta, o tumulto ensurdecedor dos múltiplos cantos das aves em revoada, escancaro os rumores em noite de lua alta, tudo o que se deposita e se cala depois de uma tarde de ventania — todas essas vozes que mal cabem na nossa voz de ilha, solitários e distantes, e ao mesmo tempo fecundos de uma riqueza infinita de vida e alma, em um microcosmo tão extenso quanto o próprio universo.
Em novo capítulo, o autor segue entusiasmado pelo caminho poético “feito um deus errante” e vai flertar com a poesia ainda mais concentrada dos haicais em Bonsai. Abandona o abraço do concreto e vai buscar nas suas raízes de menino o cheiro do lar, o som da infância no canto das cigarras, as libélulas ligadas pela cauda, os milagres que latejam no corpo dos vaga-lumes. Os japoneses também experimentam a vida como ilhéus — moram em sua pequena ilha, de escassos recursos, frágil e indefesa contra a voragem do mundo. Talvez essa a similaridade com as vozes do ilhéu de Edson Cruz.
Ao fim do livro, o autor revela um poeta que, para além de todo fingimento na reconstrução de si mesmo, para além de toda melancolia, ainda nutre uma esperança que não se desgarra dele — talvez doce e suave como a esperança dos japoneses? —, e pressente uma flor que “já brota na lama/ de outras terras”, a garantia eterna de que “o inverno nunca falha/ em se tornar primavera”.