Armadilha alucinógena

"Kaos total" é prova da força criativa e da relevância artística do inquieto Jorge Mautner
Jorge Mautner, autor de “Kaos total”
31/12/2016

O químico russo naturalizado belga Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de 1977 por seus estudos em termodinâmica, termina um de seus livros, As leis do caos, com uma mensagem otimista: “A ciência começa a estar em condições de descrever a criatividade da natureza, e o tempo, hoje, é também o tempo que não fala mais de solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve”. Embora já estejamos cansados de saber que o Kaos com K de Jorge Mautner não coincide com qualquer apêndice equacionável racionalmente (por mais generosos que sejam os números), não seria de estranhar se a frase otimista de Prigogine tivesse sido cunhada por este Filho do Holocausto. O próprio paradoxo do título do livro (leis + caos) parece próximo da personalidade de Mautner, que, se não é totalmente desorganizada, é aparentemente inorganizável. Por isso, além de tudo, a importância do trabalho empreendido por João Paulo Reys e Maria Borba como curadores desse Kaos total.

Artista consagrado por seu trabalho musical e autor de preciosidades como as sempre citadas Maracatu atômico e Lágrimas negras, os textos literários de Mautner vêm recebendo atenção especial de alguns editores principalmente a partir de 2002, quando Sergio Cohn organizou, coligiu e publicou pela Azougue as suas Obras Completas, sob o título Mitologia do kaos. Mas parece não haver esforço bastante para dar um único corpus à produção mautneriana. Temos acesso neste novo trabalho a um relevante material inédito e até então “guardado de maneira kaótica em sua casa: pinturas, livros prontos e muitas ideias espalhadas em cadernos, margens de jornal e pedaços de papel, cadernetas de telefone ou no verso de notas fiscais”, como explicam os dois organizadores.

Precede os textos uma série de pinturas nunca publicada em livro, de estética naïf, e que estampa outra dimensão (ainda menos conhecida) do seu universo mitológico. É notável a variedade e até mesmo certo rigor na combinação das cores, que, se por um lado remetem a uma tropicália exuberante, também carregam sua dose de tristeza; o saque e o amor; a caveira pirata e o coração flechado. Acrescento um bizarro dado biográfico: embora sua família tenha vindo refugiar-se no Brasil por causa da perseguição aos judeus, quem ensinou Mautner a pintar foi o pai de seu padrasto (a mãe casou-se de novo), um nazista “simpático e carinhoso” que, inclusive, ostentava uma suástica no quarto. Mais uma face daquilo que o poeta entenderia por Brasil.

Foi um acerto editorial propor o acesso às imagens logo no início do livro e não no fim como um simples anexo, porque assim elas interferem (des)norteando, complexificando a leitura dos textos que as sucedem. Essa introdução pictórica, ao mesmo tempo edênica e infernal (nisso parece consistir o que há de mais “infantil” na sua obra), se espraia por todas as páginas do livro. As cores nos acompanham, a despeito da enorme heterogeneidade, da loucura de pedra, das contradições que vamos encontrar pelo caminho, um “transe divino-pagão-cristão do Brasil-original-universal-sideral (…)”. Contato permanente entre o negativo e o positivo, Mefistófeles e Jesus Cristo, eis o que prega o aberto e propositadamente incompleto Programa do Partido Revolucionário do Kaos (PRK). E de duas, uma:

Ou o mundo se brasilifica
ou vira nazista.
Jesus de Nazaré
E os tambores do Candomblé

Música e poesia
Outro dado importante do livro é que as letras de músicas aparecem aqui como poemas. No ano em que Bob Dylan (uma das referências fortes de Mautner) é condecorado com o Nobel de Literatura, para aflição de uma casta de críticos estacionada no Iluminismo, não poderia ser mais bem-vinda esta inédita assemblage visual/verbal de um de nossos artistas mais provocadores. Um homem que, assim como Dylan, tratou confundir e infundir a própria biografia (real ou inventada) nas letras, nos poemas, nas performances. A poesia, como já se disse, não coincide consigo mesma: é sempre mais ou outra coisa que a própria poesia. Mautner, de um otimismo às vezes irritante (este homem que foi fazer música no exílio para um povo que não sabia ler), convoca: “Para a rua, tambores e poetas!/ Ainda há palavras lindas”.

As particularidades de cada texto só se revelam à medida que convivemos com o todo (total) de seu projeto, com o amálgama que constitui o seu Brasil. O “nacionalismo antropofágico” de Mautner, herdeiro de Oswald e preceptor de Caetano e Gil (como eles mesmos afirmam), se às vezes parece ufanar-se ingenuamente de um país corroído até o osso, guarda a força da alegria como uma criança que sobreviveu a uma catástrofe. Não é preciso que ele esteja certo, é preciso que ele permaneça vivo. Com todas as suas encruzilhadas e contradições — coisa que este Kaos total deixa tão claro — a presença de Mautner é uma lufada de loucura num país que às vezes parece se apegar demais ao próprio rosto. Ou à própria máscara. Se numa página ele fala dos Beats, na outra fala de candomblé, depois emenda com Freud e Bob Dylan, mais além Jesus e Padre Antônio Vieira; entre José Bonifácio e Joaquim Nabuco, Nietzsche e Fernando Pessoa. Afinal, o cara é elétrico:

Baby, baby, baby, I’m the eletric man
come and get a shock, I’m the electric man

Podemos não partilhar algumas de suas perspectivas, mas tudo aqui faz parte de uma armadilha alucinógena; o buraco do coelho. Não dá pra entender Jorge Mautner. Como disse o Sergio Cohn, ele é uma espécie de divindade trickster, um malandro pregador de peças. Em suma, um Exu. Exu de Nazaré. Esta terra prometida, o “Brasil país do futuro”, divide espaço no livro com manifestos socialistas, a denúncia do holocausto indígena, causa operária versus executivo-executor, a origem africana da humanidade, a autonomia da mulher. Partes do amálgama brasileiro. Quando o bicho pega vem a sirene da ambulância “levando o meu coração/ narcotizado pro hospital da esperança”. Há no Kaos de Mautner um otimismo renitente na criatividade (como naquele caos de Prigogine), uma vitalidade desesperada (como no título do belo poema de Pasolini) e um apetite antropófago que, aos setenta e cinco anos, não dá sinal de arrefecer. Não por acaso, seu novo projeto nasce de uma frase de Agostinho da Silva já deglutida por Caetano e que diz: “Não há abismo em que o Brasil caiba”. Oxalá. Exu Mojubá!

Kaos total
Jorge Mautner
Companhia das Letras
416 págs.
Jorge Mautner
Filho de judeus que fugiram do Holocausto, nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1941. É escritor, compositor, músico e artista de diversas mídias, autor de livros como Deus da chuva e da morte, filmes como O demiurgo e de mais de cem canções. Entre seus parceiros estão Nelson Jacobina, Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Marcelo Reis de Mello
Rascunho