O homem tem sentimentos. Na prática, o homem vive de sentimentos. As paixões, compreendidas ou incompreendidas, correspondidas ou não, são a mola mestra de nossas vidas. Ama-se e odeia-se. Persegue-se aquilo que se ama. Evita-se o que se odeia. Quando isso é possível. E quando não é possível, o que acontece? Há um trágico destino esperando por nós quando o ódio não consegue ser evitado? E quando as emoções são por demais fortes que roubam o sentido da razão, e elas, dominadoras, dirigem os atos humanos? Que espécie de vilanias o homem é capaz de cometer?
Não há regras para o ser sentimental, aquele que se deixa dominar por suas emoções. Não falo aqui do sentimentalismo piegas, apenas do amor. Falo também de ódio e paixão, de ira, cólera e inveja, de desejo e de repulsa. A cegueira provocada por tais sentimentos pode dar origem a tragédias diversas. Sófocles, na Grécia Antiga, já sabia disto. Édipo Rei é uma história de paixões e equívocos.
E os sentimentos humanos, a confusão que eles provocam nos homens, são o tema principal do novo livro de Raimundo Carrero, Sombra severa. Mais que um novo livro, é um texto antigo, escrito em 1984, revisto pelo autor. E, na minha opinião, contrariando o que disseram “n” sites de literatura, e “n” resenhas de jornais e revistas, e a própria orelha do livro, Sombra severa não é um romance regionalista.
Sim, todos os itens do sertão nordestino estão lá. A secura das paisagens e dos diálogos dos personagens estão lá. O machismo levado ao extremo por irmãos que esquecem a história da vida da própria mãe está lá. As cidades pequenas, mais semelhantes a vilarejos em que as únicas edificações são uma igreja, o casarão do coronel local e o bordel, acompanhado de bar, estão lá. Os personagens que economizam palavras e diálogos estão lá. Mas o livro não é sobre o Nordeste brasileiro. É um livro de paixões, de sentimentos, e do descontrole que eles podem provocar. E paixões afloram em qualquer lugar.
A história de Sombra severa poderia ser representada, transportada, para qualquer outra região do planeta. Não é difícil imaginar o drama de Judas, Abel e Dina, personagens principais do romance, narrado como o drama de Iilitch, Soistakovich e Natasha, em alguma perdida pradaria siberiana. Ou ainda o de N’gombo, Yiebo e Djiinga, na savana africana. Pois amor não tem fronteiras, nem conhece nacionalidade.
Em linhas gerais, temos um triângulo amoroso altamente mal resolvido, em que a tragédia dá o tom da trama. Abel rapta Dina da família Florêncio, e leva para o sítio de sua família. Ali vivem apenas ele e seu irmão mais novo, Judas. Os irmãos de Dina vão atrás de sua irmã, temerosos que ela pudesse ser “violada”. Uma sucessão de erros e tragédias leva à morte de alguns, e à desgraça mental de outros. Dizer quem é quem estragaria o romance. Mas os nomes bíblicos dos irmãos dão dicas bastante óbvias. Mesmo que os resultados finais sejam diferentes das epístolas bíblicas.
Importante é saber que Carrero não investe em uma verborragia chata e insossa, ou passagens descritivas sem fim, para contar a sua história. Se há algo em que o sertão pode ter inspirado o autor é na economia de palavras e gestos seus e dos personagens. Tudo é medido, é contido, é analisado. Poucas palavras estão sobrando em um texto que é curto, porém incisivo.
As palavras e o clima contribuem também para que a ação se desenrole principalmente na cabeça dos personagens. São os detalhes de cada gesto que transtornam a vida de cada pessoa envolvida nesta pequena tragédia no sertão pernambucano? estepe siberiana? savana africana? Cada passo de Judas, por exemplo, o remete à sua infância, ao tempo em que ele já odiava ou amava Abel. Impossível dizer se amava ou odiava, pois os sentimentos variam conforme a ocasião. O ódio pode ser o reverso do amor, pode ser uma manifestação de inveja, e então de inferioridade, e por aí vai.
O texto de Carrero mescla o presente ao passado sem que o leitor se perca confuso no meio do tempo. Se há algumas frases lugar-comum, elas não impedem que o romance provoque impacto. O choque deriva basicamente da crueza das emoções de Judas, Abel, Dina e seus irmãos. Para o cidadão urbano, cristão e ocidental, o sexo antes do casamento é normal, não algo para ser deplorado. A morte por vingança ou traição parece ser algo reservado para os folhetins ou para as páginas dos jornais “torce que pinga sangue”, sempre longe de um pretenso núcleo urbano culturalmente mais avançado. E as relações familiares não levam tanto peso, em um mundo de fracos vínculos pessoais.
Carrero consegue escapar das armadilhas de vincular estes fatos a uma realidade sertaneja. E por apostar na universalidade das emoções, consegue dar um painel do ser humano, daquele que ama, e não mede conseqüências. Mais importante ainda, Carrero não impõe um julgamento moral aos seus personagens. Se eles são bons ou ruins, cabe ao leitor decidir. O assassino de agora pode ser a vítima do instante seguinte. Felizmente, um jogo de cartas abertas, deixado para o leitor embaralhar e decidir o que fazer.
Esta é uma tendência que já estava registrada em outros livros de Carrero. Em As sombrias ruínas da alma (1999, Iluminuras, 192 págs.), o autor nos põe em contato com diferentes pessoas e situações. Não é possível determinar quem está certo e quem está errado, pois estas noções variam, conforme o julgamento de cada um. Está errado o pai que mata seus filhos e depois se suicida pois não tem como colocar o que comer sobre a mesa? Estão certos os dois amantes suicidas que, em um pacto de morte, querem por fim à sua vida, mas não conseguem?
Os contos de As sombrias… foram escritos em três anos diferentes, 81, 96 e 98, e apresentam momentos de altos e baixos. Mas em todos eles percebe-se uma forte intenção de cativar o leitor usando as emoções e os pensamentos dos personagens como chamariz. Nada de conversas fúteis sobre o sexo dos anjos. As viagens interiores que os personagens de Carrero fazem são o que o autor pode nos oferecer, nada menos que isso.
O abandono do maniqueísmo também é explícito em Somos pedras que se consomem (1995, Iluminuras, 192 págs.). Ali não há como escapar, como ficar impune às emoções dos personagens. Nenhum deles é inocente (seremos nós inocentes, por acaso?), nenhum veio a este mundo para dignificar a existência humana. Quem é puro no início se corrompe, quem já era corrompido empurra os outros para o abismo. As pedras do título são os protagonistas do livro, um triângulo amoroso cujas pontas são vértices de outros tantos, em que o prazer físico, em qualquer dimensão, é o objetivo final e o que importa. Neste caso, o fim justifica qualquer meio para os protagonistas.
Em termos de estrutura, Carrero propõe ao leitor três formas diferentes de se ler Somos pedras…, sendo que as três são contundentes. Afinal, como não ficar impressionado quando Ísis, uma das pontas do triângulo, é violentada e descobre em meio ao ato sexual que o sexo violento é a única forma de prazer verdadeiro e genuíno? Ou então quando Siegfried, outra ponta do triângulo, joga a prostituta Biba da janela e aí sim consegue gozar? Ou quando descobrimos que o parceiro ideal de Ísis é Leonardo, seu irmão? Para qualquer pessoa que passou pelo sistema educacional ocidental, um choque. A divisão do romance em três formas ajuda talvez a deglutir melhor os impactos, mas nunca a minimizá-los.
Há que se fazer um reparo, a esta altura, à editora Iluminuras. O serviço de revisão dos textos deixa a desejar, pois há diversos erros de gramática (que garanto não serem propositais do autor) em meio ao texto. Erros de concordância verbal, de concordância nominal, que gritam em meio ao texto, obstruindo a leitura.
No entanto, passando por cima destes detalhes, tem-se em mãos o trabalho de um belo escritor, acima de tudo honesto. Carrero é um autor que consegue extrair do sertão algo que é universal, e escapa facilmente do rótulo de regionalismo que quiseram lhe impor. Seria talvez mais conveniente definir Carrero como um fotógrafo de almas, que com instantâneos de raro talento traz à tona um universo de sentimentos que dá forma ao ser humano.