Ares E Esgares Do Silêncio

Ao fundo de todas as coisas, o que melhor se escuta é o silêncio? Por mais que se creia nisto, o mais provável é que não se perceba tão bem a sua extensão ou significado essencial
António Pina: “A literatura é a ilusão de que esquecer é possível”
01/08/2003

Ao fundo de todas as coisas, o que melhor se escuta é o silêncio? Por mais que se creia nisto, o mais provável é que não se perceba tão bem a sua extensão ou significado essencial. Nosso tempo, por exemplo, está tomado por uma forma frenética de ruído que se propaga e desdobra de maneira vertiginosa, absorvendo atributos existenciais que costumam ser imprescindíveis à compreensão do ser: intimidade e estética. Tais conceitos é que nos permitem a criação de um estilo de vida, uma maneira singular de estar no mundo. Sem eles, talvez o melhor a fazer seja cair fora do mundo. Diz o poeta português Manuel António Pina (1943), em algum poema: “Às vezes, como num sonho,/ vejo formas como um rosto/ e pergunto: ‘De quem é este rosto?’/ E ainda: ‘Quem pergunta isto?’” Há duas coisas básicas que um poeta deve fazer em nome do silêncio: questionar-se e expor a resultante desse embate de forma elegante. Assim um poeta constrói sua razão de ser, e todo o mundo à sua volta.

Dentro dessa perspectiva do poeta que se envolve consigo e aí percebe o quanto está arraigado a seu entorno, temos em Manuel António Pina um poeta que trafega, com notável senso de humor, por entre as vértebras do tempo, captando as singularidades da sociedade portuguesa, acentuando-lhe pequenos vícios, provocando prodígios existenciais e discretos entusiasmos. Ele próprio diz que a poesia age hoje no território de um “sem-tempo”, decerto uma maneira sua de entender o abismo em que nos encontramos. Melhor que fale o poeta: “Independentemente de à poesia pouco mais ser dado dizer do que o silêncio do mundo (silêncio que é, na língua, abertura ao sentido e sentido aberto), ela pode constituir uma espécie de epifania sem revelação daquilo que talvez saibamos sem sabermos que o sabemos”.

A trajetória deste notável poeta envolve algumas dezenas de livros, tanto de poemas quanto de literatura infantil. De um lado ou outro, os títulos são bastante sugestivos: O país das pessoas de pernas para o ar (1973), Aquele que quer morrer (1978), O pássaro da cabeça (1983), Um sítio onde pousar a cabeça (1991), A guerra do tabuleiro de xadrez (1985) e Cuidados intensivos (1994), dentre outros. Em 2003, além das reedições de Os piratas (novela) e O inventão (teatro) — ambos pela Editora Asa —, acaba de sair a novela Os papéis de K., pela Assírio & Alvim, mesma editora que publicará Os livros (poesia). No Brasil, está prevista ainda para este mês a estréia de António Pina, com Nenhuma palavra e nenhuma lembrança (poesia), pela Cosac & Naify.

Manuel António Pina é um poeta das sutilezas, de uma voragem existencial que segue um preceito surrealista defendido pelo argentino Aldo Pellegrini, o de aproveitar a incidência do acaso “para fazer surgir imagens que existiam latentes em seu próprio espírito”. Consciente de que o homem hoje não pode invocar senão a si mesmo, arrisca-se a toda forma de diálogo com os excessos da contemporaneidade. Sua relação paródica com a memória deve ser entendida juntamente com sua percepção do instante seguinte: “o poeta vê-se cegamente também como vidente (leitor) de si mesmo, como uma sombra”.

Sendo poeta inteiramente desconhecido do leitor brasileiro, melhor que comecemos por sua poesia. Depois traçamos a rota de singularidades que tornam quando menos incompreensível o fato de que as culturas brasileira e portuguesa, unidas por um mesmo idioma e separadas apenas pelo Atlântico (na verdade, não passa de um riachão), tenham levado a vida a dar as costas uma para a outra.

LEIA ENTREVISTA COM ANTÓNIO PINA

Floriano Martins
Rascunho