Arco, lira e interrogação

Obra de Octavio Paz constrói a idéia de se pensar no mundo como um texto de páginas infinitas
Octavio Paz na Cidade do México, em 1977
01/04/2013

O editor do Rascunho recebeu esta resenha com prazo bem estourado. Razão foi que o autor mudou de rumo diversas vezes — pecado recorrente, mas que talvez seja menos condenável por ter como objeto da vez Octavio Paz. O poeta-crítico é um convite para que lidemos com nossas próprias contradições e dúvidas, sejam elas coisa antiga ou inquietações surgidas durante a leitura de sua obra. E nenhum dos seus trabalhos é mais pródigo em sugestões do que O arco e a lira, recentemente devolvido às prateleiras numa parceria entre a Cosac Naify e a mexicana Fondo de Cultura Económica, instituição editorial bastante conhecida dos pesquisadores brasileiros pelos muitos livros de referência de seu catálogo, resultado de oito décadas de publicações.

A notícia era esperada há muito, principalmente entre professores e alunos dos cursos de Letras, para quem o ensaio se tornou obrigatório, apesar das críticas que sempre amealhou pela suposta falta de rigor e pelas recorrentes generalizações. Trinta anos se passaram desde a edição da Nova Fronteira, traduzida por Olga Savary. O leitor que tiver os dois livros em mãos perceberá que, para além das capas, existem outras diferenças: foram acrescentados índice onomástico (que torna ainda mais fácil perceber os poetas negligenciados), a carta-análise de Julio Cortázar, um prólogo retirado do primeiro volume das obras completas de Paz (La casa de la presencia: poesía e historia), a breve seção Recapitulações e o texto A nova analogia: poesia e tecnologia (que havia saído por aqui no Convergências: ensaios sobre arte e literatura, em 1991, pela Rocco).

Acréscimos igualmente bem-vindos seriam novas exegeses, que cumprissem o papel de atualizar a reflexão sobre a recepção do mexicano entre acadêmicos e críticos, sobre o acerto de seus vaticínios, seu diálogo com a poesia contemporânea. Ou, pelo menos, a veiculação de outras análises que, embora não inéditas, pudessem enriquecer a jornada, principalmente dos que chegassem à obra pela primeira vez. Para os interessados em buscar por conta própria, há dois conhecidos e bons artigos, entre tantos: Relectura de El arco y la lira, de Emir Rodríguez Monegal, e Octavio Paz: o mundo como texto, de Sebastião Uchoa Leite.

Ser e movimento
No artigo publicado pela revista Iberoamericana (nº 74, 1971), Monegal faz uma análise das mudanças ocorridas entre as duas versões mexicanas de O arco e a lira, de 1956 e 1967, ambas do Fondo de Cultura Económica. Antes de dissertar sobre algumas das modificações, ele adianta a tese: para Octavio Paz, cada nova aventura poética ou crítica termina por transformá-lo sem descaracterizá-lo.

Revisões importantes apareceram já na edição francesa do livro, como o sumiço das referências a Sartre e a Camus, alinhada com a tendência depreciativa enfrentada pelo existencialismo, e a maior relevância atribuída a Mallarmé. Do em redor que teria influenciado o autor, Monegal aponta a ascendência do estruturalismo francês. Não menos importante é a valorização da cultura oriental, que, se estava lá antes, passou a ser acompanhada de um ampliado conhecimento — no intervalo das duas publicações, Octavio Paz viveu na França e na Índia.

Monegal registra ainda a substituição do epílogo original, de catorze páginas, por um longo ensaio, Signos em rotação, que saíra na revista argentina Sur. No Brasil, consta da coletânea de mesmo nome, publicada na coleção Debates, da Perspectiva. Aliás, é neste título que aparece como anexo o texto de Sebastião Uchoa Leite, síntese de boa parte das virtudes e/ou fragilidades geralmente apontadas na obra do mexicano.

Para Sebastião, na obra de Paz “dúvida, ambigüidade e contradição são aceitas como tais”, e “o objeto parece às vezes inconsistente, sem peso, aéreo, difícil de ser apreendido pela linguagem lógica da crítica”. O método utilizado é cercar o tema, desdobrando-o, ramificando-o em várias direções, detendo-se para lançar novos questionamentos. Tudo escrito com nítida redundância — que não se pode confundir com deslize ou hesitação. “Tudo é suspensivo e interrogante. Como se a própria escritura os quisesse indicar seu caráter hipotético.”

Por todo o pensamento de Octavio Paz assoma a idéia da metáfora, conduzindo o leitor a pensar no mundo como um texto de páginas infinitas, que pode ser lido aleatoriamente ou metodicamente. Tudo é linguagem.

A análise levanta ainda um dos pontos discutíveis dentre as teses do livro: a sua crença de que, no mundo moderno, a tecnologia substituiu a antiga “visão do mundo”. Posição que pode ser bem conferida nesta nova edição de O arco e a lira, porque é justamente no acrescido A nova analogia que Paz afirma:

O mundo como imagem desaparece e em seu lugar se levantam as realidades da técnica, frágeis apesar de sua solidez já que estão condenadas a ser negadas por novas realidades.

Sebastião Uchoa Leite lembra que algumas criações poéticas vão além dessa redutora dicotomia, pois incorporam o produto estético ao contexto tecnológico. Mas, explicita a discordância, não é para colocar em dúvida as conclusões, “mas para reafirmar o método operatório de sua crítica: partindo da criação poética particular, Paz transpõe sistematicamente o nível da análise para o contexto histórico”.

Suspenso no abismo
Para o poeta e crítico Octavio Paz, “o poema não é uma forma literária, mas o ponto de encontro entre a poesia e o homem”. Unidade auto-suficiente, que não se repete, e que sempre carrega “com maior ou menor intensidade, toda a poesia”. O arco e a lira foi o esforço maior do mexicano para compreender esse especialíssimo lugar de diferenças e reconciliações, empreitada que nasceu de uma conferência proferida em 1942, quatro anos antes da publicação de O labirinto da solidão, seu livro de estréia.

Dividido em três partes (O poema, A revelação poética e Poesia e história), esse tratado se propõe a buscar respostas para três questões: há um dizer poético? O que dizem os poemas? E como se comunica esse dizer? Segundo Paz, existe sim a “outra voz”, o dizer poético, onde opostos se fundem, em que o homem se torna outro, para, depois, reconciliar-se consigo mesmo. “O homem é a sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem — esse perpétuo chegar e ser — é. A poesia é entrar no ser.”

O ritmo (que é bem diferente de métrica) surge como essencial na reflexão. “O ritmo é metáfora original e contém todas as outras.” Julio Cortázar considerou que aí reside a mais bela contribuição do estudo, “a de que o ritmo é sentido de algo, e de que não é medida, e sim tempo original. É visão do mundo, e imagem do mundo”.

A investigação desse fenômeno revelação que é a poesia leva a extensas enumerações, repletas de semelhantes e de contrários. O arco e a lira começa com parágrafo que lança os dados, corre todos os riscos, encosta o leitor contra a parede, obrigando-o a abraçar ou desistir do texto. E, mais adiante, de modo resumido, chega à base de suas incansáveis descrições e definições, o caráter essencial e total da poesia:

Ali, em pleno salto, o homem, suspenso no abismo, entre o isto e o aquilo, por um instante fulgurante é isto e aquilo, o que foi e o que será, vida e morte, num ser-se que é um pleno ser, uma plenitude presente. O homem já é tudo o que queria ser: rocha, mulher, ave, os outros homens e os outros seres. É imagem, casamento dos opostos, poema dizendo-se a si mesmo. É, enfim, a imagem do homem encarnado no homem.

O ensaio também não demora a apresentar ressalvas, alertas que soam como defesas antecipadas às prováveis críticas, como ao repetir que suas afirmações não devem ser tomadas como mera teoria ou especulação, pois fundadas no testemunho do encontro com poemas.

Nenhum esclarecimento ou justificativa, no entanto, evitaria que seu trabalho fosse questionado, colocado na esfera dos empreendimentos “sem rigor”, “dispersos” e “inconsistentes”, onde são freqüentemente locados também Cortázar, Borges, Blanchot e outros, cuja permanência e renovado fascínio — que pode nascer também da leitura antitética — são uma provocação: teria a crítica posterior a eles oferecido realmente mais rigor, ou recaído na armadilha dos clichês e das trilhas pasteurizadas que raramente resistem ao tempo ou a uma interrogação?

O arco e a lira
Octavio Paz
Trad.: Ari Roitman e Paulina Wacht
Cosac Naify
352 págs.
Octavio Paz
Nasceu e faleceu na Cidade do México. Foi um dos mais importantes e influentes poetas e ensaístas hispano-americanos, além de tradutor e diplomata. Passou a infância nos Estados Unidos, experiência de alteridade que seria fundamental para o seu primeiro livro, O labirinto da solidão, de 1950. Também foram publicados no Brasil Conjunções e disjunções (1969) e A outra voz (1990), entre outros.
Cristiano Ramos
Rascunho