Antes de falar sobre A armadilha, algumas palavras a respeito de seu autor nos serão úteis. Emmanuel Bove nasceu em Paris, em 20 abril de 1898, numa família de ascendência judia pelo lado paterno. Lançou vários romances populares sob o pseudônimo de Jean Vallois antes de assinar os próprios trabalhos. Teve a ajuda da famosa escritora Colette para publicar, em 1922, o ótimo Meus amigos. Integrou o Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas. Casou-se com Louise Ottensooser, judia e filiada ao Partido Comunista da França. Com a ocupação nazista no país, o também jornalista se viu numa posição cada vez mais frágil diante das medidas oficiais hostis contra franco-maçons, ciganos e judeus. Então, no fim de 1942, fugiu com a mulher para a Argélia. Os dois tomaram, a princípio, o rumo da Espanha; mas o território vizinho não lhes foi menos arredio. É possível, segundo um biógrafo, que tenham ficado retidos durante dias antes de poder continuar a viagem. Após se acomodar em Argel, a capital, pôs-se a escrever copiosamente. Três obras literárias surgiriam em menos de dois anos — aquela, que a Mundaréu fez traduzir, e outras ainda inéditas no Brasil (Départ dans la nuit e Non-lieu). Eram as últimas da carreira. Morreria em 1945 de insuficiência cardíaca, sem ter visto o fim da guerra.
Essas linhas biográficas têm a vantagem de, ao mesmo tempo, resumir a vida de Bove e revelar o enredo do livro: Joseph Bridet também é jornalista; também está casado; também quer fugir da França; também apoia o comandante da resistência, o general Charles de Gaulle; também despreza o governo fascista do marechal Philippe Pétain no período da guerra. As diferenças entre Bridet e Bove, no entanto, são decisivas. O protagonista sofre de uma inabilidade crônica. Ele não consegue discernir o significado daqueles sinais que vão se acumulando ao longo do tempo. Em certo sentido, óbvio, não podemos culpá-lo, nem chamá-lo de estúpido. Trata-se de mais um desses muitos homens em tempos sombrios, como designou a filósofa Hannah Arendt num livro. Entretanto, a arriscada estratégia era ludibriar a burocracia, conseguir um salvo-conduto para a África e de lá partir à Inglaterra a fim de se juntar às forças da oposição. “‘Vocês estavam nas estradas e agora estão em suas casas’, dissera o Marechal. Bridet tinha apenas de dizer a mesma coisa. E não devia ter nenhum escrúpulo em enganar pessoas como aquelas. Podia lhes dizer qualquer coisa. Mais tarde, quando se juntasse a De Gaulle, ele se refaria.” E a executa: “— Eu? Gaullista! Essa é boa! Depois de tudo que essa corja fez ao meu país… É incrível que não tenhamos encontrado mais cedo verdadeiros franceses que os trouxessem à razão. Mas agora tudo está mudado. Acabou a politicagem, o pistolão, o combinado”. Esse discurso falso é proferido à mesa com Laveyssère, a quem ele considera necessário impressionar por meros parentescos distantes com o médico de Pétain. O esforço de dissimulação é imenso; a tática o expõe ao perigo absoluto, feito Jonas no ventre do grande peixe.
Com isso, nota-se um traço da personalidade de Bridet a partir do qual decorrem essencialmente todos os acontecimentos da trama. Ele superdimensiona tanto sua importância quanto a própria inteligência. Age como se fosse um desses dissidentes que, pela grandiosidade, mantém renovada a atenção do Estado, por isso teme os menores gestos das autoridades — vai e volta de Vichy a Lyon em rompantes, desliga-se sem motivos aparentes dos hotéis onde está hospedado, evita ocupar a antiga casa em Paris. Em compensação, confia totalmente em seu poder de convencimento — conversa com os funcionários nas repartições supondo passar pelo que nunca foi, recupera contato com antigos conhecidos para mostrar-se petanista, dá declarações taxativas à polícia e não sem prazer. Logo fica evidente esse descompasso entre ele e a máquina pública. Daí emerge a tensão que dura o livro inteiro, até a última página. Temos a vaga noção de que cada um de seus passos talvez seja um erro que o levará à desgraça, porque o narrador em terceira pessoa se confunde demais com o protagonista para que se possa captar uma visão do conjunto. O título do romance ganha, desse modo, precisão. Qualquer movimento detonará os mecanismos da arapuca estatal que conduz um homem ao cárcere. Mas quais? Apresentar-se à polícia na censurável intenção de servir a Pétain na África certamente deve ser um deles.
Certeza e dúvida
Nessa posição ambivalente entre a certeza e a dúvida, Bridet — que, aliás, lembra o verbo francês brider, ou seja, “refrear”, “reprimir” — confronta-se periodicamente com a figura de Yolande. A esposa não precisa fingir nada aos responsáveis da polícia, porque de fato compartilha daquela tenebrosa visão de mundo nazista e, no fim, nutre por eles certa simpatia. Por isso nem lhe parece mesmo grande sacrifício aproximar-se dos balcões e submeter-se aos trâmites para conseguir, por exemplo, o Ausweis que a permite transitar pelo território francês continental, enquanto o marido, no impulso e de propósito, ignora a obrigação. À medida que a mulher se torna fundamental para o futuro de um homem sempre mais enleado pelo sistema de justiça, seu caráter dúbio alcança o primeiro plano. Os sentimentos que expressa pelo companheiro e os conselhos sobre seu comportamento não soam menos verdadeiros que a relação cordial entretida com os burocratas. E, se não pode ser acusada de colaboracionista, talvez a despreocupação ou a indiferença façam dela a pessoa ideal nas mãos de interrogadores profissionais e amigáveis. O que ela diz, quem sabe indevidamente, nas salas enfumaçadas de cigarro será permanente mistério.
A distância entre Yolande e Bridet, que desde o início se desenha nítida, alarga-se com o tempo, porque não são as paredes de uma prisão que os separam, mas percepções antagônicas sobre um mundo em ruínas. A França se rompeu entre os que acreditam que é possível repactuar o convívio social sobre essas novas bases, onde a submissão não é um empecilho à vida, e os que não veem saída senão continuar crendo que antigos laços fincados na liberdade só serão viáveis de novo com resistência. Pairando sobre eles, porém, a repressão cultural petanista acaba matizando esses valores (Yolande nunca entrega o marido; Bridet tem faíscas de antissemitismo) e se manifesta nessa polifonia de “vozes deslocadas, mas terrivelmente convergentes”, de acordo com a pesquisadora Geneviève Morel.
Essa oposição que afeta em cada contexto as vítimas de opressão recebe, nesta obra, representação tragicômica. Nenhum dos dois nomes centrais parece ter a energia ou o entendimento necessário para realizar o que imporia a consciência se levada ao extremo. Bridet, mesmo tendo sido convocado a comparecer à polícia, ainda se impressiona que o “tempo da facilidade, do obséquio, da gentileza fora revogado”, como se “não houvesse compreendido o profundo sentido da derrota, como se ele tivesse a ingenuidade de pensar que as coisas poderiam ainda se passar como em um período normal”; já Yolande se contentava em voltar para Paris e reabrir sua loja. Enfim, ambos são apenas pobres-diabos, ou então gente medíocre — como prefere escrever o tradutor Paulo Serber Figueira de Mello em perspicaz dissertação sobre o romancista. Essas criaturas que se arrastam para o desastre pela própria inaptidão são uma especialidade da prosa de Bove. Assim como em A armadilha somos levados a isso em Meus amigos, no qual também veremos a demolição do solitário Victor Bâton, que, destituído de traquejo social, procura pela amizade e pelo amor que nunca virão.