Aqui e agora

"Namíbia, não!", vencedor do Prêmio Jabuti na categoria juvenil, usa a distopia para tratar da questão racial
Aldri Anunciação, autor de “Namíbia, não!”
01/12/2013

Em novembro, Curitiba foi protagonista de uma discussão no mínimo curiosa. A Câmara de Vereadores da cidade aprovou a criação de um novo feriado, o Dia da Consciência Negra, que já existe em várias cidades do Brasil. No entanto, a Associação Comercial do Paraná entrou na Justiça contra a criação do feriado, alegando que ele traria prejuízos aos comerciantes. A Justiça deu uma liminar a favor da associação, e até o fechamento desta edição o feriado encontrava-se suspenso.

Logo apareceram comentaristas e analistas (sempre os há aos borbotões nessas ocasiões) dizendo que esse feriado específico não faria sentido em Curitiba, pois sua população negra é muito pequena comparada à de outras cidades onde o feriado existe, como São Paulo e Rio de Janeiro. Outros, mais engraçadinhos, sugeriram que houvesse o Dia da Consciência Polaca, em homenagem aos tantos poloneses que em Curitiba encontraram guarida no fim do século 19, começo do 20. Um vereador, esse mais insano, sugeriu a criação do Dia da Consciência Índia. A proposta não chegou nem a passar da sugestão.

Aproveitando o mês da Consciência Negra (novembro), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um estudo sobre mortes violentas de negros no país. Os números mostram que estes sofrem mais com a violência do que os não-negros, que eles têm uma expectativa de vida menor e que, em geral, são mais pobres que os não-negros. Além da questão econômica, o racismo foi apontado como uma das causas desses resultados. Ou seja, o país da democracia racial, como alguns gostam de chamar o Brasil, não existe.

Apesar de os números serem claros, falar em consciência negra e racismo ainda é difícil no Brasil, principalmente pela negação da existência de ambos, o que torna o debate impossível. Por isso, Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, aparece no cenário literário como uma possível tentativa de diálogo para tratar de uma questão espinhosa — a segregação racial no país. E, ao lançar mão de características do teatro do absurdo e criar uma distopia (uma utopia ao contrário, em que no futuro há uma sociedade controlada por um poder autoritário e/ou totalitário) para tratar do tema, consegue nos atingir com mais força do que simplesmente denunciando fatos como os da pesquisa do Ipea.

Resposta oficial
Namíbia, não! é uma peça teatral com dois personagens, André e Antônio, negros. Ou melhor, cidadãos de melanina acentuada, como são chamados nesse Brasil alternativo do futuro. Primos, vivendo juntos em uma grande cidade, Antônio estuda em um curso preparatório para o concurso de diplomata de melanina acentuada do Itamaraty (uma referência às cotas raciais em vigor); André cursa Direito.

A peça começa quando Antônio está arrumando a mesa do café da manhã e André chega da rua, esbaforido e assustado. Antônio acredita que seja apenas reflexo da noitada de André, que gosta da boemia. Mas não. André fugiu da polícia. Uma medida provisória anunciada na noite anterior determinou que todos os cidadãos de melanina acentuada do Brasil fossem devolvidos à África, como uma forma de reparação pelos mais de trezentos anos de escravidão no país. Através desse gesto magnânimo, o governo brasileiro queria pedir desculpas pelos séculos de erros, e ir em frente.

Antônio a princípio desconfia da veracidade do fato, mas ao longo da peça a situação se desdobra de tal forma que a verdade se impõe. Sim, um governo autoritário resolve “devolver” todos os negros à África. Sim, um governo autoritário ficou com medo de uma ação trabalhista em que um advogado maluco pede indenização aos negros pelos séculos de escravidão, uma ação que envolveria o pagamento de alguns trilhões de reais para negros e descendentes. Sim, o governo acha mais fácil deportá-los a criar uma sociedade igualitária e justa.

Confinados em seu apartamento, crentes de que o artigo 150 do Código Penal, que caracteriza como crime a invasão de domicílio, impedirá a polícia de entrar em sua residência, André e Antônio vão acompanhando o desenrolar dos fatos. Glória Maria, a repórter da Globo, aparece nas imagens projetadas sendo deportada para a Angola. Outros cidadãos, que nunca se declararam negros ou pardos, também são presos e deportados. Os cachorros de pêlo claro são valorizados, os de pêlo escuro, não, e por aí vai.

Além do lugar-comum
É na revelação dos pequenos detalhes cotidianos que Aldri Anunciação consegue mostrar ao leitor o quanto o racismo está entranhado em nossa sociedade, e como é difícil — seja para brancos, seja para negros — enfrentar o fato de maneira a resolvê-lo. Apesar de a obra acontecer em um futuro próximo (o autor sugere que o tempo da peça seja sempre cinco anos à frente do tempo atual), a menção a pessoas e fatos dos dias atuais — Glória Maria, Programa do Jô, Copa do Mundo — acrescentam contemporaneidade ao tema. O autor não está falando de uma realidade alternativa ou distante, mas do aqui e do agora.

Apesar de o texto contar com alguns lugares-comuns da discussão racial — por exemplo, a indenização paga a judeus e japoneses pelo governo americano após a Segunda Guerra —, eles servem para contextualização — ainda que haja certo maniqueísmo nesse uso (governo autoritário x cidadãos inocentes). Porém, a abordagem da questão da segregação racial só poderá ser feita se os lugares-comuns forem deixados de lado. Cobrir a discussão de frases feitas e pensamentos prévios afasta o problema do centro do debate e o perpetua.

Assim, Namíbia, não!, vencedor do Prêmio Jabuti 2013 na categoria ficção juvenil, é um bom livro para uma base de discussão séria sobre a questão racial. Sério sem ser enfadonho, divertido sem cair no leviano, Aldri consegue abordar de forma diferente um problema real. A bela edição da Editora da Universidade Federal da Bahia traz ainda imagens do making off da peça e de algumas encenações, que ajudam a dar uma idéia de como devem ter sido suas diversas apresentações, plenas de recursos audiovisuais.

Namíbia, não!
Aldri Anunciação
EDUFBA
159 págs
Aldri Anunciação
Nasceu em Salvador (BA), em 1977. Formou-se em Teoria Teatral na Universidade do Rio de Janeiro e trabalhou como ator na televisão (Rede Globo, Rede Bandeirantes, Rede Record e Canal Futura), apresentando-se ainda em diversas peças teatrais no Rio de Janeiro. Em 2009, iniciou a escrita de Namíbia, não!, texto selecionado para o Núcleo de Leituras — Negro Olhar no Centro de Cultura Laura Alvim e vencedor do Prêmio Fapex de Teatro e do Jabuti, na categoria de ficção juvenil.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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