Toda a carga múltipla de sentidos, coexistentes, que se possa encontrar no termo definição (enunciação, nitidez, significação, equivalência, decisão), está nítida ou sugestivamente presente na poesia de Ana Marques Gastão. Evocar a noite como metáfora-chave de sua poética requer certo cuidado, pois o léxico a que recorre a poeta portuguesa possui plena consciência de seu revés, e age pautado por um dilacerante sentido de reciprocidade. Basta pensar aqui na sutileza cortante das imagens que se seguem: “Na noite apenas/ a língua afasta a solidão. Atravessado/ pela gramática do silêncio, já não se agarra/ ao vento, o rosto, vazio até aos ossos”.
Em tais versos, temos exemplo suficiente do que falo. Neles, tamanha densidade existencial, aliada ao próprio tratamento da linguagem, é algo raro de encontrar-se na poesia contemporânea. Tal raridade, contudo, atropela a ansiedade que caracteriza nosso tempo. E sobretudo atropela uma já comum inversão de valores, lembrando que a poesia, no dizer de Carlos Nejar, não cabe aos “bibelôs inanimados”, mas sim às “criaturas vivas”.
E diz isto Nejar justamente ao apresentar ao leitor brasileiro a poesia de Ana Marques Gastão, em livro especialmente preparado por ela para Escrituras (São Paulo). Trata-se de A definição da noite, e que seja considerado uma antologia traz em si um reiterado risco. Ou melhor, requer o mesmo cuidado já anteriormente mencionado. Não se trata de uma seleta, mas antes de um tratado. Ao selecionar o melhor de seus livros até aqui publicados, a eles acrescentando poemas inéditos, acaba por acentuar a definição de sua poética, revelando aí um livro outro, com uma dilacerante identidade própria.
Bem, mas vamos às apresentações: Ana Marques Gastão nasceu em Lisboa, em 1962. Crítica literária do Diário de Notícias, cabe destacar uma acentuada propensão ao diálogo, considerando importantes entrevistas que tem realizado, a exemplo de poetas como Pedro Tamen e Ana Hatherly. Em Portugal publicou os seguintes livros: Tempo de morrer, tempo para viver (1998), Terra sem mãe (2000) e Nocturnos (2002). Quase concluído encontra-se um livro escrito a partir da obra de Paula Rego, um dos nomes mais consistentes das artes plásticas em Portugal.
O desconhecimento, por parte dos brasileiros, da tradição poética portuguesa é algo que sempre me preocupou, ainda mais se pensarmos que tal alheamento localiza-se sobremaneira entre nossos poetas, o que ajuda a consubstanciar um precário estado de presunção do poeta brasileiro em relação ao resto do mundo. Dentro de uma mesma geração a que pertence Ana Marques Gastão, chamaria aqui a atenção para dois outros nomes: Luís Miguel Nava (1957-1995) e José Tolentino Mendonça (1965).
Um dos mais notáveis poetas portugueses da geração ligada essencialmente ao Surrealismo, António Maria Lisboa (1928-1953), destaca-se em grande parte pela agudez com que tratava toda perspectiva de dogmatismo. Soube ser, dentro do movimento surrealista, seu melhor crítico. Carlos Nejar aponta Ana Marques Gastão como “uma voz original e vigorosa na atual poesia portuguesa”, com o que concordo inteiramente. Sua poética, pela vertigem existencial que a configura, ajuda a esculpir um perfil crítico de nossa época, sobretudo lembrando o que dela disse Maria Teresa Horta, que, “embora manejando a sua dor, jamais se compraz consigo mesma”.
A poesia é o recorte vertiginoso de uma existência. Quem não perceber tal sentido intenso do desamparo não pode ser autor ou leitor, figuras que se confundem em subterrâneas cumplicidades. O que temos em A definição da noite é um forte indicativo de que o poema ainda pode arrancar de si o melhor do homem, o que faz com que Ana Marques Gastão, qualquer que seja sua pátria, deva ser hoje considerada um grande poeta.