A ficção é atraente. Ela é capaz de nos fazer esquecer a realidade, pelo menos por alguns momentos. Quantas vezes você não sumiu do mapa para viver as aventuras de algum personagem de um romance de aventura? E quantas vezes não mergulhou tão profundamente em um filme que, de repente, viu confundirem-se, ao seu redor, vida e ficção? Atualmente, há ainda mais chances de se desaparecer em meio ao universo ficcional. Basta ver a quantidade de pessoas que vivem, hoje, exclusivamente na internet, em Orkuts, Counter Strikes, multiplayers, chats, messengers e outras traquitanas, tudo virtual, nada real.
Ter em mente a tentação que a ficção é capaz de provocar nos homens talvez seja um pré-requisito indispensável para se apreciar o último trabalho de Umberto Eco, A misteriosa chama da Rainha Loana. Felizmente, Eco não elege a ficção em detrimento da realidade. Com ele, elas caminham juntas, e onde uma falta, a outra pode aparecer como uma substituta, não à altura, mas capaz de suprir algumas necessidades básicas do ser humano.
A trama do romance de Eco é, até certo ponto, simples. Giambattista Bodoni, de apelido Yambo, é um senhor de quase 60 anos, vítima de um acidente que o fez perder toda a memória emocional. Mais ou menos assim: ele sabe como fazer as coisas práticas do dia-a-dia, como escovar os dentes, caminhar, se vestir e pentear o cabelo; ele sabe fazer as operações aritméticas e sabe ler, escrever e desenhar; recorda-se, com muitos detalhes, de muita coisa que leu, e conhece muito bem a história da humanidade; só não é capaz de lembrar de si próprio. Ele não tem recordações sentimentais: não lembra de alguém por quem tenha se apaixonado, da face de sua mulher, de seus filhos, de suas amantes, de seus pais, de seu avô. E se algum fato da história da humanidade o tiver afetado emocionalmente, ele também acaba apagado. O próprio Yambo explica: “Carrego a memória do mundo, mas não a minha própria”.
Na primeira parte do livro o encontramos despertando de seu acidente, esquecido de suas memórias, mas carregado com as do mundo. Também o vemos retornando à sua casa e às suas atividades profissionais (um detalhe muito importante é que Yambo é comerciante de livros raros, um apaixonado pela alta cultura). Conhecemos também toda a família de Yambo: sua mulher Paola, suas filhas Carla e Nicoletta, seus três netos, seu amigo Gianni, sua irmã Ada — que mora na Austrália — e a polonesa Sibilla. Isso para falar apenas dos vivos, sem contar seus pais, tios e avós mortos. Ao mesmo tempo em que somos apresentados a esses personagens, também o é Yambo. Afinal, ele não se lembra de nada. Assim, sabemos sobre Yambo tanto quanto ele sabe de si, e o livro nada mais é do que um roteiro de viagem em direção a suas memórias afetivas.
Na segunda parte da obra, por sugestão de Paola, Yambo parte para Solara, antiga vila onde morava seu avô, onde ele passou um pedaço altamente significativo de sua vida durante a 2.ª Guerra Mundial. A idéia de Paola é que Yambo, ao entrar em contato com sua infância, encontre elementos que o ajudem a dissipar a névoa que o impede de lembrar de si próprio. Lá ele reencontra Amalia, uma senhora de 70 anos, sem filhos, que, desde que se conhece por gente, trabalha para a família Bodoni. Além do reencontro com alguém que o conhece desde que nasceu, Yambo reencontra também inúmeras caixas com livros, revistas, selos e outros objetos que pertenceram ou a ele ou ao seu avô, antiquário de profissão.
Seria exagero dizer que, em Solara, Yambo recobra sua memória. Na verdade, ele vai descobrindo o que pode ter sido relevante para a sua vida devido às reações que nota em seu corpo. Quando um livro lhe foi importante, seu corpo reage. Sente uma palpitação, um formigamento nas mãos ou um embaçar da vista. Enfim, a cada trecho corresponde uma reação corporal equivalente ao seu grau de significação. Eco é hábil em esconder de Yambo o que realmente aconteceu e, assim, junto com o protagonista, vamos reconstruindo um pouco de sua história. Essa parceria talvez seja uma das melhores características do livro. Não somos leitores oniscientes, não sabemos o que houve com o protagonista, não esperamos que ele descubra o que já sabemos. Apenas nos aventuramos, juntos, no resgate de sua memória emocional.
A terceira e conclusiva parte de A misteriosa chama da Rainha Loana é surpreendente, e dizer qualquer coisa a respeito dela — além de que possui um ótimo e inesperado desfecho — seria tirar um tanto do prazer de sua leitura. Basta dizer que tudo se encerra devido a uma revelação feita quase na metade do livro, decisiva para explicar o estado de Yambo.
Que Eco escreve bem é redundante (a não ser que você não goste dele, mas aí é outra história). Também não é preciso dizer que Eco é inteligente e que, às vezes, seu excesso de erudição chega a ser irritante (talvez O pêndulo de Foucault seja o melhor exemplo de como isso pode ser enfadonho). Mas o fato de ser ele um admirador da cultura popular talvez seja necessário ressaltar. Pois, por mais inventado que seja seu Yambo, com certeza ele reflete o pensamento e o comportamento dos meninos italianos que tinham entre 5 e 10 anos no início da 2.ª Guerra. Assim, percorrem as páginas de A misteriosa chama… a própria Rainha Loana, Flash Gordon, Mandrake, Topolino (que é o nome do Mickey na Itália), Sandokan, os livros de Júlio Verne, diversos quadrinhos americanos italianizados durante o regime fascista, enfim, toda a cultura pop — musical, literária e cinematográfica — daquela época. Yambo torna-se um erudito na vida adulta, mas é a cultura pop que o reconduz à própria vida. E — descontando os momentos excessivamente descritivos do livro, em que Eco reconta enredos de outras obras — todo o restante é muito bom, tornando muito difícil largá-lo antes de seu fim.
Caso você não conhece a cultura popular italiana de então (e talvez nem os italianos a conheçam), as belas ilustrações do livro o ajudarão a compor o quadro de como era a vida na Itália daquele período. Claro que o resto da vida de Yambo tem a sua importância, mas não chega a ser tão determinante como foram aqueles anos passados em Solara, nem tão marcantes quanto os eventos que ali tiveram lugar. Um belíssimo livro, que nem os pouquíssimos erros de revisão ajudam a estragar.
Se você evita o autor de O nome da rosa desde O pêndulo de Foucault, e se aprecia os efeitos que a cultura pode provocar nos homens — seja ela erudita ou popular —, está aí um bom momento de dar ao professor Eco uma nova chance. É um livro emocionante, com algumas histórias de amor nele — amor à liberdade, amor à cultura, amor à humanidade — e que merecem ser conhecidas.