Apóstolos após apóstolos ou O dia em que Elis Regina quase vira santa

Espada?! Ai, ai. Tá boa, santa?! Se a memória não me engana, quem proferiu essa foi Elis Regina. Não sei bem se ela inventou a frase. Ou se copiou. Ou ou. Livrai-me dos mal-entendidos, Senhor
Bruno Zeni, autor de “O fluxo silencioso das máquinas”
01/07/2002

“Entre a cruz e a espada, me atiro contra a espada.”

Espada?! Ai, ai. Tá boa, santa?! Se a memória não me engana, quem proferiu essa foi Elis Regina. Não sei bem se ela inventou a frase. Ou se copiou. Ou ou. Livrai-me dos mal-entendidos, Senhor. Não quero zombar, aqui, de nenhum criador.

O fato é que fui convidado para escrever sobre um livro e vou incluir um outro. Atire a primeira pedra quem nunca atirou. Cometerei um pecado? Blasfemarei? Ou acaba de acontecer um milagre malandro? A lágrima é vinagre. Não sou santo, minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Pedirei ajuda a Judas? Não. Eu sei que meus amigos me darão a maior forca.

Salvemos, juntos, a palavra.

Vamos logo às páginas.

O livro destinado, desde o começo, a ser resenhado se chama Os apóstolos — doze revelações. Trata-se de uma antologia saída pela editora Nova Alexandria e coordenada — e sacramentada — pela escritora Márcia Denser. A Nova Alexandria possui uma coleção chamada Prosa Presente e convida para ela um montão de gente. A coleção é temática e começou com o Decálogo, depois 13 maneiras de amar…. Os apóstolos é a recente criação. Estão lá o Deonísio da Silva, o Moacyr Scliar, o Nelson de Oliveira, o Álvaro Alves de Faria, o Sílvio Fiorani e… Ufa! A preguiça me enguiça. Vamos deixar de ladainha sem explicação. Cada escritor, enfim, foi escolhido para ser um discípulo de Cristo.

Jesus que me crucifique por isso, mas quando a “apostologia” chegou, eu estava com outro livro nas mãos: O fluxo silencioso das máquinas, do escritor curitibano — radicado em São Paulo — Bruno Zeni.

Bruno tem cara de bom ladrão. Roubou um pouco desta resenha para ele. Acontece dessas coisas quando a ceia não é nada santa. Por debaixo da mesa, a tentação. Só porque conheço o Bruno Zeni pessoalmente? Não. Conheço também a Márcia Denser. E o Nelson de Oliveira. E o Bernardo Ajzenberg. Conheço o Roniwalter Jatobá. A diferença, vai ver, está num par de olhos verdes, os maldosos dirão. Ou na cara de anjo pagão do Bruno, “Os sonhos mais lindos sonhei/ De quimeras mil um castelo ergui”.

Fodeu!

O que está fazendo, mais uma vez, a voz de Elis onde o canto deveria ser gregoriano?

O melhor é eu deixar de viadagem e ir direto ao ponto, parágrafo.

A verdade é que a linguagem, para mim, é o único e autêntico apostolado. Creio nisso. Não abro mão do sermão. Faço sempre a mesma pregação: poucos são os que se aventuram. Os que vão além de Jerusalém. Seja louvado o esforço da Márcia Denser, uma escritora, inclusive, que sabe bem do que estou falando. Valeu a sua boa vontade, mas o evangelho é fraco. Há um cansaço crônico. Poucos são os textos que se salvam. Será que preciso dizer por que são fracos, caralho? Quem fará o cego ver? Quando o ego não é cego, usa óculos escuros.

Escrevam cartas à redação que eu aponto oração por oração do livro. Mas melhor seria que vocês comprassem a antologia. Valerá o sacríficio pela presença de Luiz Ruffato, por exemplo. Para escrever o conto André (a.C.), Ruffato não precisou saber quem foi o apóstolo André. Pra quê? A antologia, idem, valerá pelo conto lésbico, demoniacamente bem escrito por Nelson de Oliveira. Pelo conto curto do Ajzenberg (que acabou de lançar o ótimo romance A gaiola de Faraday). Pelo Scliar. Pelo Evangelho de Tomé, de Dionísio da Silva. A maioria, no entanto, peca pelo excesso de tradição e burocracia. Pelo cansaço e falta de ousadia. Seria maldição de antologia isso? Pode ser, mas não quero crer.

É aí que entra O fluxo silencioso das máquinas. Por quê? Precisava eu de um “penetra” que invadisse o “conjunto canônico”. Que viesse pelas mãos do Diabo, amassar o pão à ceia, quentinho. Podem dizer que eu não valho nada, que eu não valho mesmo. Prefiro arder na chama do inferno. Ou nas Pequenas iluminações asfálticas do Bruno. É assim que ele denomina seus fragmentos, seus flashes urbanos. Com essas iluminações divinas, proponho um frescor profano. Há algo de novo n’O fluxo silencioso das máquinas, uma pulsação desengrenada, uma melancolia babilônica.

Que porra é essa, “melancolia babilônica”?

Vai ver que é poesia. Uma poesia geometrizada, sinfônica, polifônica, que o escritor português Lobo Antunes defende como as ferramentas da anunciada e redentora prosa moderna.

Engrenagens que você encontra, desde sempre, em escritores consagrados como João Gilberto Noll. Nos litúrgicos e inspirados parágrafos de Wilson Bueno. Nos de Sant’Anna, o Sérgio. No engenhoso testamento lingüístico do paraense Vicente Franz Cecim. E, também, enfim, na própria Márcia Denser.

Isso, sem contar a devoção de novos prosadores como Altair Martins, com seu terceiro e poderoso livro Se choverem pássaros, (o título é assim mesmo, com uma vírgula no final), a ser lançado ainda este ano. Na bem-vinda perversão de Clara Averbuck, em sua confessional e nada religiosa Máquina de pinball — no prelo. Não esquecer o Ronaldo Bressane, os Livros do Mal dos Daniéis Galera e Pellizzari (e agora, também, do Marcelo Benvenutti). E mais recentemente, o mineiro Wir Caetano, com a sua curta e bem-aventurada Morte porca, em edição independente.

Credo!

Será que o Inferno anda, assim, tão cheio de gente?!!

Felizmente, o fluxo não pára.

Tantos são os escritores que se atiram (cruuuzes!!!) contra a espada.

“Nossa Senhora Aparecida…”, canta Elis, em nossa romaria.

Romaria — graças — em busca não só de apóstolos. Mas de melhores palavras.

O fluxo silencioso das máquinas
Bruno Zeni
Ateliê Editorial
112 págs.
Os apóstolos — doze revelações
Vários autores
Nova Alexandria
150 págs.
Marcelino Freire

Nasceu em 1967 em Sertânia (PE). Escreveu, entre outros livros, Contos negreiros (Prêmio Jabuti 2006) e o romance Nossos ossos (Prêmio Machado de Assis 2013). É criador da Balada Literária, um dos principais eventos literários do país.

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