O livro Fora de mim, de Martha Medeiros, traz uma discussão já bem conhecida do grande público: o rompimento de uma relação amorosa e suas desastrosas conseqüências para o sujeito enamorado. Muitas são as dificuldades de falar da perda do objeto amado, ou melhor, dos projetos e sonhos em torno dos quais este objeto orbitava. Entre silêncio e fala, entretanto, as tentativas de expressão desses sentimentos persistem. Sob diversas formas de linguagem, estão aí por todos os lados e poderíamos dizer em todos os tempos. Constitui-se uma questão inesgotável que não envelhece e que deixou, há muito, de ser privilégio dos românticos de séculos passados. Como atesta a narradora: “É uma dor tão recorrente na vida de tantas mulheres e tantos homens, é assunto tão repisado em revistas, é um sentimento tão clássico e tão narrado em livros, filmes e canções, que mesmo que eu não lembrasse, lembrariam por mim”.
Não é à toa que o livro começa se remetendo a relatos de um acidente de avião. Dos primeiros anúncios da iminência do perigo até a parada da aeronave, “ninguém fala, ninguém se move. Todos em choque. (…) Alguma coisa que existia não existe mais”. Esta é mais uma história de amor com a morte anunciada: “Eu sabia que era uma viagem sem destino, sabia desde o início e não sabia, não sabia que doeria tanto”.
A primeira parte do livro desenvolve-se num tom confessional. Inicia-se com um suposto acidente de avião, num pequeno prólogo em destaque gráfico de três folhas. Prossegue discorrendo sobre o desastre da separação. A maior parte da narrativa é dirigida a um interlocutor inacessível, ou melhor, insensível aos sofrimentos da narradora: “Você lembra como eu chorei aquela noite, lembra do fim, você não pode ter esquecido aquela cena, (…) você olhando para fora da janela, enquanto eu derramava toda a minha frustração e meu desespero”. O texto flui como se fosse uma carta, ou seja, em estilo predominante epistolar, com alguns enxertos de reflexões. O interlocutor a quem a protagonista se dirige não tem nome, é apresentado através do pronome de tratamento você. Um você tão poderoso que parecia mesmo indispensável. Fatos, ações e providências, como lembranças que precisam ser partilhadas, vão sendo levantados, na tentativa de reconstrução de um momento marcante e desestruturador, como toda situação-limite.
Como recomeçar, sem a formulação desse discurso amoroso, inevitavelmente dolorido, mas o único possível dadas as circunstâncias? Segundo Roland Barthes: “Querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem: essa região tumultuada onde a linguagem é ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva (…) e pobre”. É demais e excessiva pela expansão ilimitada do sujeito, submerso na sua individualidade emocional e, ao mesmo tempo, é demasiadamente pouca e pobre, pelas limitações dos códigos lingüísticos, sempre insuficientes para dizer o indizível do amor.
Linguagem e paixão
O desafio é enfrentado com sucesso por Martha Medeiros, que, através de sua personagem narradora, no turbilhão de sensações e conflitos de uma sobrevivente, reúne mecanismos de defesa para transitar nessas regiões tumultuadas da linguagem e da paixão. O paradoxo desse processo encontra-se, entre outras coisas, na convivência nada pacífica entre o transbordamento emocional do sujeito apaixonado e a necessidade urgente de racionalização como tábua de salvação. Dizer para compreender, compreender para sobreviver. Mesmo com toda a precariedade que a linguagem oferece, torna-se imperativo correr o risco.
Do ponto de vista temporal é importante observar que a trama começa pelo fim. Inicia-se pela separação do casal. Só na segunda parte do livro é que o começo da relação e o que esta representou para a protagonista passam a ser explicitados. “Depois de uma separação matrimonial asséptica (…), ganhei como prêmio um macho livre, espontâneo, original que sabia fingir muito bem uma paixão que não sentia. (…) Um simulacro, aquela altura, era mais que suficiente para mim.”
O simulacro passou a não ser mais suficiente e tornou-se uma cilada. Os encantos do sedutor, alternados por crises de ciúme e fúria, foram prenunciando o fim, prorrogado pela paixão e por uma cegueira voluntária. “Você não me enganou, eu é que adorei enganar a mim mesma.” O distúrbio do parceiro, que não abria mão dos seus delírios, só foi compreendido claramente tempos depois. Envolvida pela paixão, diz a protagonista: “Eu vivia em êxtase (…), era eu fora de esquadro, eu descentrada”, ou seja, fora de mim. “A questão era simples: para continuar ao seu lado, eu teria que desistir de mim.”
E é claro que a lucidez nessas situações demora a chegar. A tendência da amante é se empenhar na adaptação, reter o processo de desgaste em sacrifício da própria identidade, descaracterizando-se, perdendo-se de si mesma. Talvez, este movimento entre o apego desesperado de controlar o incontrolável e o risco da perda de si mesmo justifique o título do romance. Por outro lado, o fora de mim pode também dizer respeito ao mundo lá fora desse eu conturbado pela paixão. Este confronta-se com a realidade que se descortina além de si mesmo. Fora desse sujeito que se descentra e ameaça se diluir no outro, ou na imagem que construiu do outro e de si mesmo, há um mundo chamando. Ao se referir ao término do casamento de 16 anos, sem traumas ou dores tão mutiladoras, avalia: “Deu tudo certo, mas uma hora a repetição cansa, o entusiasmo acaba, há textos novos por encenar e um mundo lá fora chamando”. Fora de mim, há um mundo, há um outro, há o leitor.
O leitor parece convocado para esse trabalho de resgate, de buscas, de sentidos. A grande maioria dos textos da autora prima por essa convocação dos leitores. Há um apelo a uma identificação solidária com os personagens em seus romances, em suas crônicas e em adaptações cinematográficas ou televisivas. O ponto de vista da mulher, em Fora de mim e em outros textos, como Divã, aproxima o universo feminino nesse nível de identificação, mas toca também os demais leitores pela simplicidade da linguagem no desenvolvimento de uma temática afetiva bem delineada.
Na terceira parte do livro, há um claro afastamento daquele momento inicial do desastre da separação, tanto do ponto de vista temporal quanto do afetivo. “Passados quatro anos, ainda lembro.” Quase como num romance de educação, faz-se o inventário das perdas e ganhos, chega-se à predominância da racionalização e à iluminação de alguns pontos obscuros anteriores. Por que passados quatro anos ela ainda se lembra da “dor massacrante do abandono”? “Por estranho que pareça, há uma sensação de pertencimento, algo ainda está conosco. A saudade é uma presença.” Só temos saudade daquilo que nos lembra coisas queridas. O fato é que só dói o abandono daquilo que nos foi caro.
Rubem Alves, em Retratos de amor, acredita que antes de amarmos alguém, amamos uma bela cena, a qual esse alguém se ajusta. Diz ele: “Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida”. Com esses registros montamos uma cena amorosa. A memória poética é nossa, é do sujeito que a construiu, o amante que sai de cena deixa o vazio, mas algo permanece, algo ainda nos pertence muito profundamente. E é isto, provavelmente, o que nos impulsiona para recomeçar. Como dizia Chico Buarque, para consolo dos amantes abandonados e desespero da ditadura militar: “Apesar de você, amanhã há ser outro dia”.