Aparente simplicidade

Em “Olho de gato”, Margaret Atwood tem como tema o universo feminino a partir da perspectiva de uma pequena garota
Margaret Atwood: obra escrutina a alma do leitor a partir das personagens.
01/01/2008

A feminista-personalidade internacional Camile Paglia, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, apontou os problemas do movimento que, no auge das mudanças em prol dos direitos civis, provocou a libertação do jugo das mulheres. Em outras palavras, e para ser mais direto, Paglia disse que as mulheres haviam deixado para trás, como se fosse uma simples troca, o direito à maternidade em virtude das conquistas de igualdade junto aos homens. Nesse sentido, de acordo com a ativista, a condição da mulher perdia espaço para a militância muitas vezes politizada, porém inócua. Essa politização dos direitos também merece um paralelo na literatura. Com o aumento da patrulha ideológica, também as artes tornaram-se terreno fértil para o discurso das minorias. Nesse ponto, os estudos culturais forneceram o arcabouço teórico para que os “artistas” dessem espaço no discurso hegemônico. E a qualidade?, alguém pode perguntar. Bom, a qualidade dessa produção, dizem os teóricos pós-modernos, é algo criado pelo discurso hegemônico do cânone ocidental, que nem sempre privilegia as vozes que, de fato, possuem talento. Para este resenhista, no entanto, a qualidade, é, sim, importante — sobretudo quando se trata da lavra de Margaret Atwood, neste caso em Olho de gato.

A obra de Atwood é uma espécie de mosaico em forma de romance. Tal como um quadro impressionista, tão necessário quanto o tema abordado é a técnica que envolve o processo de criação. Nesse quesito, Atwood tece uma prosa eivada de recursos estilísticos de alto gabarito, fugindo dos elementos sóbrios de uma narrativa tradicional. A propósito, é bom que se diga que tais recursos tradicionais não estão necessariamente superados ou esgotados. Ocorre que no atual estado das coisas da produção literária mundial — sim, leitor, mundial — a narrativa tradicional já não mais surte o efeito desejado pelos autores. Tome-se como exemplo o singelo fato dos sucessos tanto dos best-sellers como da literatura com “conteúdo”. Ambas as propostas, digamos, precisam estar fundamentadas na realidade histórica mais ou menos comum ao leitor médio. Daí explica-se, portanto, o sucesso absoluto das biografias no Brasil e no exterior — mas isso, com efeito, é tema para outro ensaio. Por ora, voltemos a Margaret Atwood.

Atwood tem como tema o universo feminino a partir da perspectiva de uma pequena garota, Elaine Risley, cuja grande amiga é Cordelia, a qual, é bom frisar, o leitor fica em dúvida se é ou não imaginária, tamanha é a fluidez dos diálogos entre ambas. Outros personagens se somam à história, porém é em torno dessas duas que a narrativa encontra seu eixo central, seu sentido, uma rota para o caminho. Nessa estrada, Cordelia surge como um escape às cenas que a pintora Elaine vê ao mesmo tempo em que acontece a retrospectiva de sua obra. No caso, as cenas não são necessariamente significativas, posto que a maioria ocorre em um universo cotidiano e muitas vezes demasiadamente simplório. Assim é quando Elaine observa as bolsas e as roupas das mulheres que a cercam. Para isso, ela chama Cordelia:

Cordelia está sentada com uma expressão de indiferença, cutucando-me com o cotovelo de vez em quando, encarando as pessoas com seus olhos verde-acinzentados, opacos e reluzentes como metal. Ela consegue subjugar qualquer um com o olhar, e eu sou tão boa quanto ela. Nós somos impenetráveis, nós brilhamos, nós temos treze anos.

Às descrições desse gênero, a autora acrescenta as reminiscências de infância de Elaine, a protagonista, cuja imaginação está repleta de representações oriundas de um universo distinto do real, quase onírico, sobretudo lírico. Em verdade, um jogo de palavras não é capaz de traduzir o sentido de Olho de gato. A autora constrói o mosaico à medida que as lembranças surgem na cabeça da personagem principal, como se fosse com extrema naturalidade. Entretanto, a leitura das 431 páginas mostra que a obra de Atwood pode ser tudo, exceto natural. Mesmo o talento para uma empresa desse tipo precisa ser devidamente burilado, como se cada palavra tivesse exatamente seu lugar certo até mesmo para dar a impressão de encaixe descompromissado. Atwood conta uma história aparentemente simples de uma forma aparentemente despreocupada. Aí é que são elas. Como diz uma personagem coadjuvante em Fale com ela, um dos recentes filmes do diretor espanhol Pedro Almodóvar, “nada é simples”.

E é com essa aparência de simplicidade que a autora aborda temas de ordem bastante complexa. Eis a razão de determinadas escolhas. Atwood não declara isso textualmente na obra — embora possa ter feito isso em uma entrevista ou em um ou outro ensaio crítico —, mas fica praticamente evidente ao leitor que ela optou por determinado formato justamente para dar esse efeito de contraste ao romance. Foi proposital. E isso não somente na temática, mas, sobretudo, no estilo, na forma. Afinal, assim como no romance de Atwood, nossa memória não obedece a uma linearidade absoluta, objetiva, isenta de erros. Muito ao contrário. Não são poucas as vezes em que somos traídos por aquilo que imaginamos lembrar. Nesse caso, mesmo os detentores da chamada “memória de elefante” constroem para si — a partir de critérios não necessariamente aleatórios ou politicamente corretos — uma colcha de retalhos dos acontecimentos passados. A memória, nesse caso, é inventada e torna-se parte integrante do nosso discurso, daquilo que dizemos que vivemos e daquilo que acreditamos. É nesse contexto que existem as reminiscências. É nessa perspectiva que a obra de Atwood escrutina a alma do leitor a partir das personagens.

Está claro que Olho de gato não deve ser tomado como a única referência para uma narrativa sobre memória, sobre mulheres e sobre obras de arte. Muitos são os livros que, a partir de outros enfoques tão particulares como esse, tratam do tema de forma semelhante e até mesmo mais rico do ponto de vista literário. Ainda assim, o que faz Olho de gato um romance singular é o fato de combinar tantos elementos de uma forma tão repleta de significados ao leitor. Este, por sua vez, pode escolher entre a forma e o conteúdo, entre o contexto e o texto, entre o fato e a memória e, no limite, entre Elaine e Cordelia. Depois dessas escolhas, será impossível aceitar como resposta pronta a hipótese de que a qualidade é “um discurso construído”. Pode até ser, mas é necessário talento para tanto.

Olho de gato
Margaret Atwood
Trad.: Léa Viveiros de Castro
Rocco
431 págs.
Margaret Atwood
Nasceu em 1939, em Ottawa. É uma das mais importantes escritoras canadenses em atividade. Entre ensaios, poemas e romances, publicou: O conto de aia, O assassino cego e A tenda. Olho de gato, publicado originalmente em 1988, foi finalista do Booker Prize de 1989.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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