Aos pedaços, em grande forma

Iara Biderman estreia na ficção com contos de ritmo ágil e linguagem enxuta
Iara Biderman, autora de “Tantra e a arte de cortar cebolas”
01/12/2024

No conto Fuga em dó maior, a protagonista entra em um elevador e, bastante contrariada, percebe que terá de parar em todos os andares. Alguém pressionou todos os botões, conclui:

Sexto. Quinto, um vaso de flores, óleo sobre tela, aparece na janelinha da porta. Ninguém abre. Quarto. No terceiro, um espelho, ela vai se olhar, uma mão segurando a porta do elevador, outra ajeitando o cabelo. Já estava na hora de retocar as raízes. Desiste de espiar o segundo e o primeiro. No térreo, o moleque abre a porta do lado de fora, antes de ela tomar a decisão. Não assume o susto nem aceita desculpas, só pode ter sido esse moleque que apertou todos os botões.

A visão da personagem, ao capturar flashes dos andares visitados involuntariamente, pode ser lida como uma síntese do conto como gênero. Com eles, acessamos um recorte ficcional, aspectos que dão a conhecer não um todo, mas partes daquilo que se narra. As 21 narrativas breves que integram Tantra e a arte de cortar cebolas, de Iara Biderman, também podem ser entendidas como andares visitados pelos leitores. Ao apertar botão a botão, esbarramos em um nível e olhamos (às vezes pela fechadura) as fatias de vida focalizadas pela lente implacável da autora, como no excelente conto que intitula o livro: “um dia acordo cebola, toda cortada em cubinhos”, afirma a narradora durante um encontro erótico com um estrangeiro.

A arte do conto elege o fragmento como modo de operar, e o talho em pedaços, neste caso, é imagem nada gratuita. Dentro do limite físico caraterístico do gênero, há que se saber onde e como cortar. Tantra e a arte de cortar cebolas se constitui, na maior parte, de histórias curtas e de aparente facilidade. Mas, neste caso, livro enxuto equivale a leitura demorada, para melhor degustar os pedacinhos talhados. O que se conta em cada uma das narrativas é denso, e compacta a linguagem que acessa essas experiências.

Não vale ter pressa, mesmo que seja para fruir a “versão mini” de algo, como no excelente Espécies de apartamento, que atribui valor ao diminuto, no gesto da poda de um girassol-anão:

Atrasei porque estava cuidando dela. As coisas pequenas precisam de muita atenção, mas não pedem. Mentira. Quando precisam, pedem — baixinho —, difícil escutar. Daí inventamos cuidado demais e elas só pedindo menos, menos.

O trecho é revelador do ritmo ágil da prosa de Biderman, tributária de uma linguagem enxuta.

Algo semelhante se dá em Inventário dos perdidos, em que miudezas vistas a olho nu ganham categoria poética. O tom irônico surge para dizer de relações esvaziadas, curtidas em boa dose de ceticismo:

Tampas de caneta, estojos de óculos, lápis sem ponta, folhas em branco. Despedida. Não era bem perder o emprego, partia em busca de novos desafios — nem parecia uma frase de Eleanora, mas ela disse.

Diante da multiplicidade de registros e temas do conjunto, é possível destacar Roubadas, releitura do aterrorizante Sapatinhos vermelhos (1849), de Hans Christian Andersen. Na história do escritor dinamarquês uma menina está condenada a dançar eternamente e tem os pés mutilados como forma de interromper sua danação. Também o desejo sem freios surge na narrativa de Biderman, centrada nas ações de uma cleptomaníaca. Um dos objetos roubados é um par de sapatilhas, “como maçãs polidas, como corações, como ameixas tingidas de vermelho”.

Compondo uma espécie de duo, O que fazer em Estrasburgo se aproxima do conto anterior pela temática do descontrole, remetendo a um episódio real ocorrido em Estrasburgo no século 16, em que parte da população começou a dançar ininterruptamente, em um estranho fenômeno batizado de epidemia de dança. Presente em ambos, a ideia da falta de limites e de um corpo em estado de possessão, fadado a fazer algo até morrer. Ao atualizar o relato histórico, o mesmo impulso feroz aparece sob efeito de drogas sintéticas, em corpos frenéticos que bailam durante uma festa em Berlim.

É também um ímpeto irresistível a mola propulsora de Uber, em que a linguagem afiada da autora transita entre o lirismo e o kitsch, revelando que talvez exista amor em SP — ele aparece sob a condição de sexo passageiro, misturado ao afeto que logo se desmancha, como a espuma em formato de coração no café bebido em uma loja de conveniência. Uma corrida de táxi pela cidade em um conto com o célebre nocaute final formulado por Julio Cortázar, nesse conjunto em que sexo, cidade e violência se fazem presentes, emendados por um fio invisível.

Um fecho inesperado se dá igualmente em Necrofilosofia, relato endereçado à mãe do narrador. Em pouco menos de duas páginas, esse texto de urdidura machadiana e dicção fonsequiana reforça um importante mote deste conjunto: a arte de perder. Ele também se faz presente nos admiráveis Lavanderia e Retiro, ecoando os versos do conhecido poema de Elisabeth Bishop.

De modos variados, seria possível inventariar, na coletânea, a arte de talhar, a arte de perder e a arte de furtar — não somente objetos, mas tradições literárias, revigoradas nesta bela estreia capaz de reunir estilhaços das vidas narradas.

Tantra e a arte de cortar cebolas
Iara Biderman
Editora 34
113 págs.
Iara Biderman
Nasceu em São Paulo (SP), em 1961. Jornalista e crítica, foi curadora de festivais e prêmios de dança no Brasil. Atualmente é editora da revista Quatro Cinco Um. Tantra e a arte de cortar cebolas é seu primeiro livro de ficção.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho