Há 320 anos, em 18 de julho, Antonio Vieira descia definitivamente do púlpito. O jesuíta português, nascido em 1608, foi autor de dezenas de memoráveis sermões que, com o tempo, transcenderam os objetivos sacros. Atuou também como diplomata junto ao rei D. João IV, amigo pessoal, escrevendo relevantes textos de cunho político. Produziu ainda poemas e uma significativa obra profética, além de cartas inúmeras. A sua prolífica e complexa obra indicava rara sensibilidade quanto ao seu mundo.
Olhar para Vieira é olhar para o século 17. O denominado século do Barroco foi marcado pelo questionamento às verdades bíblicas — até aquele momento, a Igreja Católica era a principal organizadora do conhecimento do mundo ocidental. A Reforma Protestante, consolidada nos Quinhentos, com a ideia de predestinação, contesta a proximidade do homem com Deus, bem como as possibilidades de se conhecer Suas vontades — o arrependimento e as boas obras não são mais determinantes para a salvação. A revolução científica, sobretudo com as descobertas de Copérnico, Kepler e Galileu, subtrai do homem a centralidade do mundo, colocando-o como coadjuvante de forças outras de uma natureza a se mostrar cada vez menos óbvia. E a descoberta da América questiona as Sagradas Escrituras, ao apresentar seres humanos não provenientes da linhagem adâmica — os indígenas do Novo Mundo.
O Barroco
Assim é que na produção artística barroca ressoa todo um sentimento singular. O homem está sem chão. Já não reconhece tudo o que antes lhe era apresentado pela certeza Divina, como obra da Criação. Ou seja, a religião, naquele momento, deixa de ser pura revelação de verdades eternas, incontestáveis, tornando-se um caminho de busca ansiosa por Deus na alma humana. Não há mais lugar para a contemplação renascentista que identificava todas as coisas como obra de Deus.
A fonte única de verdade e conhecimento é fraturada, gerando um abalo gigantesco nos alicerces da razão de ser do homem daquele tempo. Vieira não é exceção. Ele representa a tentativa da estremecida Igreja Católica de retomar sua liderança religiosa e política, principalmente enquanto detentora do conhecimento, da capacidade de explicação do mundo.
O leitor, ao se deparar com a obra de Vieira, deve ter isso em mente. O jesuíta é conhecido por sua personalidade forte em meio à angústia humana. O momento tempestuoso não proporciona a Vieira ouvintes serenos. Pelo contrário, o inaciano tem diante de si cristãos ávidos pelo reencontro com a acolhedora bondade divina. Querem a proximidade de Deus bem como a certeza de Sua presença nas menores coisas. Desejam confirmar a salvação pelas ações. Os dogmas católicos, no esteio da Contra-Reforma, são reforçados na progressiva investida de reconstrução da segurança do mundo.
[…] eu antes quisera a certeza das boas obras que a da revelação porque a revelação não me pode salvar sem boas obras, e as boas obras me podem salvar sem a revelação. (Sermão da Primeira Dominga do Advento, Capela Real, Lisboa, 1652)
Sim, Vieira, o último dos escolásticos, é o conservadorismo de seu tempo. O esforço na reconstrução da abalada certeza — indo além da contemplação — o direciona para uma forma diferenciada de pregar. Deve, então, lidar com as angústias do homem comum, com todas as dúvidas semeadas em seu mundo, em sua forma de compreender a vida — pois não basta mais apenas saber que tudo foi criado por Deus, precisa demonstrá-lo por meio da palavra.
Por isso, diz Vieira, “que cousa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de si, e ver-se a si mesmo […]” (Sermão da Sexagésima, Capela Real, Lisboa, 1655). Eis o homem lutando consigo mesmo — deseja ardentemente acreditar, mas o mundo não lhe dá certezas. A crença em Deus agora lhe exige esforço colossal, ao mesmo tempo em que não ousa não crer. O sermão, portanto, funciona como arma, como forma de tocar o ser humano em sua intimidade, suscitando-lhe a dúvida para, então, levá-lo à reflexão. Não é afago à consciência, mas espelho para que qualidades e defeitos sejam visíveis.
A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia. (Sermão da Sexagésima, Capela Real, Lisboa, 1655)
“O novo”
Vieira, por meio da retórica, inova ao ser conservador. O caráter barroco, guardando todas as contradições de um mundo cada vez mais surpreendente, tenta reconstruir a lógica e segurança de antes. Vieira manipula os sentimentos de seu público, tocando-lhe no coração repleto de incertezas, de modo a torná-lo um fiel fervoroso, acreditando naquilo que este homem, do século 17, não pode enxergar.
A alegoria, do grego agourein (algo como “falar por meio de outro”), tão comum em seu sermonário, evoca um saber que não mais está ali, visível, porém, faz-se presente. Trata-se de um saber acessível por meio do artifício, de um segundo elemento, exposto, neste caso, através do verbo, da palavra. E essa alegoria está por toda a parte.
Vieira, como barroco, toma em um movimento alegórico a menor e mais insignificante das coisas, explicitando sua importância na ordem comum do mundo — aquela da Criação. Garante, assim, ao mais simples objeto, significado ímpar, ao mesmo tempo em que suscita a reflexão em torno de um conhecimento comum ao homem daquele tempo, pois criado na tradição cristã-católica. É esse o constante esforço em conferir um sentido, uma razão de viver, ao seu ouvinte, ansioso na busca deste significado.
O historiador e crítico de arte Giulio Carlo Argan argumenta que para o homem cristão, o antigo não é somente história, sendo também natureza. Para esse homem, a natureza seria uma das formas de se conhecer Deus, sobretudo no período Barroco. Vieira, por meio da retórica, ressaltando o já mencionado caráter alegórico de sua pregação, retrata isso de maneira gloriosa, como, por exemplo, no Sermão de Santo Antônio, aos peixes. Nele, atuando como missionário no Maranhão e Grão-Pará, o jesuíta entra em confronto com os colonos, que escravizavam os índios, contrariando os preceitos da Coroa Portuguesa e da Igreja Católica. Vieira condena a atitude através do sermão, valendo-se de um jogo de alegorias, através do qual prefere pregar aos peixes do que aos homens. E, assim, reduz o ouvinte pecador à insignificância frente ao mais simples dos animais — estes, sim, capazes de seguir os mandamentos de Cristo.
Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo tão indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para servir a Ele, e eu não consigo o fim para que me criou. […] Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as minhas mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que “melhor lhe fora não nascer homem”. (Sermão de Santo Antônio, aos peixes, São Luís, Maranhão, 1654)
Como se pode ver, o jesuíta não diz apenas “não escravizem os índios”. Vieira fala do mal para alcançar o bem. Fala do bem para demonstrar o mal. Fala do certo para atestar o errado, bem como expõe pecados, erros, para reforçar o correto. Fala do belo para suscitar a atenção ao feio, porém, vale-se deste para acentuar ainda mais a beleza de algo. Prega falando do Diabo, mas em seu horizonte há apenas Deus. Fala da desgraça do povo lusitano, da perda de sua autonomia política e consequente submissão a Castela, mas é o futuro glorioso de Portugal que se lhe brilha adiante.
Ainda por meio da alegoria, Vieira utiliza o passado para falar do futuro — e vale-se igualmente do sofrido presente para conferir densidade ao verdadeiro cristão. Ensaia verbos sobre a efemeridade das coisas como forma de destacar a vida eterna e a salvação. E sopra palavras para o angustiado coração, atento às certezas da beleza de um mundo seguro, na presença de Deus.
Vieira domina a língua portuguesa, manipula-a de forma própria, organizando tudo ao seu redor, à medida que confere ao contraditório homem, seu ouvinte, o conforto da verdade revelada pelas Escrituras, a segurança de Deus. Para atingir o seu interesse, naquele tempo, precisava falar a todos, fazer-se compreensível, tornando a retórica sacra palatável para o mais simples dos fiéis.
Se gostas da afetação e pompa de palavras, e do estilo que chamam “culto”, não me leias. Quando este estilo mais florescia, nasceram as primeiras verduras do meu [discurso] (que perdoarás quando as encontrares); mas valeu-me tanto sempre a clareza, que, só porque me entendiam, comecei a ser ouvido, e o começaram também a ser os que reconheceram o seu engano, e mal se entendiam a si mesmos. (Sermão da Sexagésima, Capela Real, Lisboa, 1655)
O fragmento acima evidencia o compromisso com o mundo. Este, enquanto obra da Criação, deve ser interpretado. Vieira o faz acentuando a ideia da presença de Deus na menor das coisas. Como resultado, à medida que se compreende a mensagem por ele transmitida, a homogeneidade, o todo social, adquire forma, pois os homens — embora sufocados pela contradição — compartilham da crença católica como possibilidade instauradora de uma comunidade perfeita
Quem come o meu corpo e bebe o meu sangue — diz Cristo — está em mim e eu estou nele. — Se perguntarmos aos intérpretes o entendimento destas palavras, todos respondem que significam uma união real e verdadeira, com que por meio da Comunhão ficamos unidos a Cristo. Isto dizem os expositores e os teólogos comumente, mas eu, com licença sua, tenho para mim que neste mistério não há uma só união, senão duas e mui diferentes: uma união com que Cristo nos quis unir consigo, e outra união com que nos quis unir conosco. O efeito da primeira união é estarmos unidos com Cristo; o efeito da segunda união é estarmos unidos entre nós. (Sermão do Santíssimo Sacramento, Igreja de Santa Engrácia, Lisboa, 1662)
Enfim, o sermão de Vieira não é apenas pregação. Sua palavra não é puramente palavra. Antes, é ação — pois toca o homem do século 17 na tentativa de mobilizá-lo junto a Deus. Seu sermonário detém um universo de expectativas quanto ao mundo, ao mesmo tempo em que sensibiliza o ouvinte, tentando suscitar-lhe a agir no mundo, um direcionamento específico, resgatando a segurança perdida. Em sua obra, o verbo é empunhado ao modo do militante que luta pela verdade, com toda a sua convicção. E, assim, com a rara beleza dos contrastes barrocos, Vieira, como grande artífice da língua portuguesa, constrói, no conjunto de sua obra, uma literatura a retratar o esforço pela construção de uma nova e velha história.
NOTA
Em 2015, a Editora Loyola começou a lançar uma nova coleção da obra completa de Antonio Vieira, disposta em 30 volumes, sob a coordenação de José Eduardo Franco e Pedro Calafate. Em se tratando apenas de sermões, a edição mais utilizada como fonte de pesquisas — inclusive para a redação deste texto — é a Lello & Irmão (Porto/Lisboa), de 1951, em 15 volumes.