Segundo Cioran, para um autor é um verdadeiro desastre ser compreendido. Aconteceu com Roland Barthes vivo e continua nessa toada após sua morte. Em seu Caderno de viagem a China, apresenta suas discordâncias ao regime, no momento incensado pela intelectualidade européia. É óbvio que as patrulhas ideológicas não perderiam essa chance de entrar em cena. E a incompreensão, que não é muito seletiva na hora de se estabelecer, aproveita a deixa e na seqüência trata de crescer. Esse foi apenas um exemplo, é óbvio que a incompreensão acerca de Barthes e sua obra não é fruto apenas do relatado anteriormente.
Algo dessa ordem, mas com outras motivações, se deu com dois escritores que nomearei — um que fez por merecer a condição de incompreendido, nunca distanciou o autor da obra; e o outro continua enigmático devido ao enorme silêncio que ronda sua obra e também pelas análises sonolentas destinadas à mesma. Respectivamente, Fausto Wolff e Prado Veppo.
Tive o privilégio de conviver com Wolff — esse grande escritor. Fomos amigos, e Roland Barthes, o ofício de escrever, de Éric Marty, me fez reviver aqueles tempos. Também me fez recordar a relação professor/aluno, que não chegou às raias da amizade, com Prado Veppo, num curso pré-vestibular. Ambos tiveram grande responsabilidade na orientação que dei a minha vida profissional.
Fausto Wolff e Prado Veppo estão mortos. A viagem sentimental propiciada pela leitura de Roland Barthes, o ofício de escrever acentuou a ternura e a tristeza dessa obra de Marty. Não exclusivamente deste, mas arrisco dizer que em co-autoria com Roland Barthes.
Impossível que qualquer leitor que ame e respeite a literatura não venha a engrossar as fileiras dos cúmplices do autor à medida que amor, em todas as instâncias, inclua-se aí seus exageros, e liberdade vão dando o tom dessa narrativa alimentada pelas vivências e da memória.
Roland Barthes, o ofício de escrever trata da saudade — esse exílio cruel a que nossos mortos insubstituíveis nos condenam; e aos meus mortos citados acima, acrescento o morto de Éric Marty. E se uma coisa puxa outra, com a morte não seria diferente, e uma morte puxa outra, então penso em minha filha, nessa nostalgia massacrante que é não saber o que seria essa pessoa, desse presente que não lhe foi permitido.
Platão diz que a sensação de uma coisa leva a outra semelhante. Mas com nossos afetos não é bem assim, essa serve tão somente para nos conduzir ao vazio.
Roland Barthes, o ofício de escrever é um livro fora do normal. Entenda, bitolado leitor, esse fora do normal como algo bom, muito bom, que escapa ao corriqueiro, à mesmice; algo que consegue unir técnica e afeto de forma a não se tornar enfadonho, tampouco piegas. Uma obra de exceção entre as obras desse gênero que podem ser recebidas como acerto de contas, homenagem, aspectos biográficos.
Radiografias
O exame de Marty apresenta três radiografias de Roland Barthes. Na primeira, Memória de uma amizade, o autor está no centro, é autobiográfica, aborda o cotidiano dos últimos anos de Barthes. Em A obra, o leitor entrará em contato, em ordem cronológica o que é muito importante, com a totalidade dos seus textos. A terceira sessão traz a leitura de um seminário de Barthes sobre seu livro mais conhecido, Fragmentos de um discurso amoroso.
Importante observar a sensibilidade da construção desse Roland Barthes, o ofício de escrever, que tem seu início no encontro entre o mestre e o jovem discípulo de vinte anos. O que poderia deixar suspeitas de mero exercício do ego de Éric Marty é desfeito pelo próprio já na página 15 com seu pedido de perdão ao leitor pelo fato de falar na primeira pessoa, de relatar situações onde se encontra no centro dos acontecimentos.
A idéia do autor é de expor Barthes. E ele consegue. Começa com a reflexão acerca das motivações que podem unir o escritor, já famoso e respeitado, com um jovem ainda ingênuo que não é escritor; ou conforme Marty enfatiza, aquele que ainda não escreve.
A ingenuidade de Marty, no entanto, só se deixa ver no início, muito no início. Logo o leitor perceberá estar diante de um autor que não se intimida, tampouco tenta sacralizar seu mestre.
Trata o homossexualismo de Barthes sem moralismos ou aspecto engrandecedor. Ao se voltar à obra, consegue ser didático e crítico, questiona o mestre, reflete acerca da obra e pode acreditar, desconfiado leitor, são poucos os elogios. Todos procedentes. Não há excessos nessa obra de Marty.
Extremamente didático e imprescindível é o capítulo sobre Fragmentos de um discurso amoroso, publicado em 1977, algo semelhante a um dicionário ou estágios amorosos, onde Barthes abandona a rigidez teórica que pode ser observada em sua obra até então e que encontra em Mitologias sua grande representatividade.
Mas não foi apenas este o episódio que se presta a retratar a argúcia de Barthes: fizera o mesmo com O prazer do texto (1973) no momento em que a semiologia se tornava a fonte dos estereótipos de onde jorravam conceitos dos mais herméticos.
Senso crítico
Nesse capítulo, o leitor percebe que a admiração pelo mestre não embotou o senso crítico do discípulo. Se Fragmentos de um discurso amoroso quebra uma seqüência hermética dos livros de Barthes e assume a aura de “livro simples”, Marty atiça o confronto com as Fábulas de La Fontaine quando pergunta o que significa dar voz aos animais, e tomando os Fragmentos indaga “quem é o sujeito amoroso, quem é esse amante que fala e que diz”.
Permita uma sugestão, acessível leitor, a leitura concomitante de Fragmentos de um discurso amoroso, indispensável para suscitar discordâncias ou simplesmente confirmar as impressões de Marty. Instigante a análise do autor a respeito da mãe de Barthes, Henriette Bringer. Viveram juntos até a morte dela aos 84 anos. Barthes se dedicou quase que exclusivamente a cuidar da mãe em seus últimos seis meses de vida .
Desde que a cuidava, não existia nada além dela. Ela era tudo para mim e me esqueci de escrever.
“A intratável realidade”, conforme o próprio Barthes, pode ser atestada quando coloca a figura da mãe no centro de Fragmentos. Não a sua mãe, mas a mãe como complemento ou parceira do imaginário que definira em Roland Barthes por Roland Barthes como uma categoria de futuro.
Apressado leitor, sei o que passa pela sua cabeça: o resenhista começou afirmando não se tratar de relato enfadonho e agora vem com esse papo de categoria de futuro. Saiba que poderia citar Lacan, mas não o farei; já está citado à exaustão no livro de Marty.
Importante saber, afetuoso leitor, que porventura ainda não teve oportunidade de amar a um de seus mestres que seja, a culpa não é sua. Credite a eles mesmos tal ônus.
Viver também é amar e se você tiver a oportunidade de amar a seus mestres e receber deles a devida orientação como este aprendiz teve o privilégio, e depois lhe restar a saudade, saiba, paciente leitor, que a saudade lhe visitará com amor. Falei de mestre, não de dono da verdade, mas alguém que lhe permita questionar, discutir, que saiba valorizar seu aprendizado. É o que vemos em Roland Barthes, o ofício de escrever.
Ao encerrar, convém lembrar o aspecto relacionado à ideologia e me parece que tal aspecto é levado ao esgotamento por Barthes em Mitologias. Lá o vinho francês, a luta livre, o automóvel Citroën DS são examinados ora como clichês de esquerda ora desprovidos dessa identidade. Fiz essa digressão apenas para dar mais uma pista, caso o leitor desconheça, da abrangência da obra de Barthes. E antes que esqueça, se o tempo for curto, priorize a leitura do capítulo acerca de Fragmentos de um discurso amoroso. Vale o livro, ou melhor, vale vários livros.
Barthes diz num parágrafo de O mito hoje:
Até o momento só existe uma escolha possível, e essa escolha se faz entre dois métodos igualmente excessivos: considerar um real inteiramente permeável à história, e ideologizar; ou, inversamente, considerar um real finalmente impenetrável, irredutível, e, nesse caso, poetizar. Em resumo, não vejo ainda a síntese entre ideologia e poesia (entendo por poesia, de maneira mais geral, a procura do sentido inalienável das coisas).
Devido a sua atitude crítica e reformadora, além de admirar seu valor, e significação geral de sua obra, Roland Barthes tem prioridade como referência quando do desempenho de minhas atividades profissionais.
Não posso esquecer da necessidade de defender a autonomia da literatura enquanto obra de arte, e para finalizar concedo a palavra a Flaubert: “É por isso que a arte é a própria Verdade”.