Antigas inquietações

Em “O silêncio dos amantes”, Lya Luft volta a tratar das profundas misérias humanas
Lya Luft, autora de “O silêncio dos amantes”
01/06/2008

Há anos o problema da crescente incomunicabilidade inquieta a escritora Lya Luft. Foi o desejo de discutir o problema de maneira objetiva e direta que a levou a escrever as reflexões de seu livro de maior sucesso, Perdas & ganhos. Embora escudado na enorme aceitação pública, este primeiro debate não a satisfazia ainda. O tema se apresentava com fôlego para persistir num outro nível de seu palco, a ficção. Depois de seis anos sem publicar ficção — Mar de dentro, misto de histórias inventadas com reflexões, foi publicado em 2002 — Lya se debruça, com O silêncio dos amantes, em contos que outra coisa não faz senão discutir as conseqüências da incomunicabilidade.

O livro reúne vinte contos inicialmente pensados como um romance. Talvez por isso as narrativas estejam sempre voltando a temas como a loucura, a morte, as perdas. Também do ponto de vista narrativo, os contos passeiam por universos oníricos, mágicos, embora mantenham sempre um pé solidamente fixado no realismo. O fundamental é mesmo que a autora está de volta às suas antigas inquietações. E aí nos reencontramos com anões e pessoas comuns, todos marcados por incompreensões e resistências que levam às mais profundas misérias humanas.

Destas misérias a que mais se destaca é a morte. Morre-se muito nestes contos. Em praticamente todas as histórias se encontra um morto a dominar a existência dos vivos. Uma conclusão mais apressada pode até apontar para uma preocupação natural de uma escritora que há anos vem contabilizando perdas. Mas, como ela mesma anuncia, sua vida foi mais de ganhos e a reflexão sobre a morte vem dos princípios filosóficos enfeixados na tragédia grega, onde se morria para renascer em novas experiências.

Certamente vem daí o paralelo que a escritora traça entre a morte e o vôo. Logo no conto de abertura do volume, A pedra da bruxa, um menino simplesmente se deixa levar — pelo menos na visão da mãe — pelo desejo simples de se tornar pássaro. Sua morte não chega de fato a se realizar plenamente. E o jogo de dubiedade que Lya Luft desenvolve é fundamental para sua ficção. Ela não pretende criar regras ou determinar linhas de ação. Quer contar histórias e refletir sobre os medos e ousadias humanos.

Há outras metáforas para a morte no livro. A loucura e o preconceito são as mais visíveis delas. Alguns personagens vão definhando aos poucos em sua loucura até chegarem à morte real. Este definhamento é uma espécie de fim suavizado pelo lirismo com que são descritos. Desde o pai que corre dos rios e mares por não aceitar seu chamado até a avó que volta a uma segunda infância na velhice plena. No caso específico dos dois personagens a morte lhes chega como uma fatalidade inevitável.

Morte violenta
Uma curiosidade é que em apenas um momento do livro, exatamente no conto que dá título ao livro — O silêncio dos amantes — a morte vem com violência. Um assaltante, mesmo depois de tomar o carro de sua vítima, a mata friamente. E ela estava grávida de sete meses. A cena é descrita com as minúcias mais doídas que possa ter. Mesmo assim Lya não perde a linha mestra de sua literatura, a busca da sentimentalidade poética de cada gesto humano.

Esta linha é que a leva ao real sentido de seu livro que outro não é senão discutir os sentidos da paixão. Lya Luft, desde sua estréia como ficcionista em 1980 com o romance As parceiras, pauta-se por uma estética aprendida com os autores do realismo. Não abre mão de escancarar os desejos e medos de seus personagens, os mostra de maneira intensamente verdadeira, mas, por outro lado, os recheia de humanidade. Por isso se ama tanto em seus livros, mesmo que essa paixão perigosamente se aproxime da obsessão. Como também pode ser rompida pela simples falta de uma comunicação honesta. Em suma, seus personagens vivem mesmo mergulhados em sofisticadas soluções psicológicas.

A fortaleza dos personagens certamente nasce de sua construção primária. A autora busca permanentemente o apoio das pessoas comuns para seu ofício. Suas criaturas são homens, mulheres e crianças que cantam, dançam, fazem compras, trabalham, se alimentam. Ou seja, pessoas facilmente encontradas nas ruas das cidades. Mesmo quando são premidos com alguma distorção física — seus anões, suas velhas com elefantíase, seus loucos — os personagens ganham algum sentido de vida. É a flor no pântano de que tantos poetas já falaram.

Este novo livro marca ainda o retorno de Lya Luft às transgressões familiares. Ela mesma costuma brincar que nunca escreve sobre suas vivências, que sempre teve uma família normalíssima, bem o oposto de seus personagens. Na ficção as famílias estão sempre no limite da opressão, da loucura, da dor. E esta é a família que se mostra em O silêncio dos amantes. Mas se isso não vem da própria experiência, vem de onde, enfim? Das reflexões da autora que sempre esteve preocupada com as marcas deixadas pela convivência íntima das pessoas. Uma convivência que pode gerar paz perpétua, mas pode se ferir com os preconceitos e as intransigências. E como a normalidade nem sempre oferece bom material de literatura, Lya constrói feridas.

O sucesso de Perdas & ganhos, num determinado momento, assustou Lya Luft. Também lhe trouxe novos admiradores, mas desagradou muitos de seus leitores tradicionais. Não foram poucos os que, injustamente, a acusaram de diminuir sua literatura, quando ela apenas estava encontrando novos caminhos de comunicação com o público. Polêmicas à parte, O silêncio dos amantes traz de volta a excelente ficcionista que é Lya Luft. E isso certamente vai agradar seus mais antigos e tradicionais companheiros.

O silêncio dos amantes
Lya Luft
Record
160 págs.
Lya Luft
Começou sua carreira literária em 1980, aos 41 anos com a publicação do romance As parceiras. Publicou dezessete outros livros de poesia, crônica, contos, reflexões, além de romances e literatura infantil. Em 2003, publicou seu livro de maior sucesso, Perdas & ganhos. Formada em letras anglo-germânicas e com mestrado em Literatura Brasileira e Lingüística Aplicada, traduziu autores consagrados, como Virginia Woolf, Günter Grass, Thomas Mann e Doris Lessing. Ganhadora de vários prêmios literários, desde 2004 assina a coluna Ponto de Vista na revista Veja.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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