Antidocumentário

"Solar", de Ian McEwan, trata da impotência do discurso racional frente a uma coletividade imersa em preconceitos
Ian McEwan, autor de “Solar”
01/01/2011

Por ocasião do lançamento de seu romance Sábado, Ian McEwan declarou em entrevistas que pretendia cultivar uma “literatura de idéias”, integrando digressões e reflexões ensaísticas ao corpo da narrativa. Em Solar, seu último romance, ocorre algo parecido, na medida em que a trama principal baseia-se em uma tese — a saber, o desenvolvimento de uma tecnologia que permite usar a energia solar como combustível — em torno da qual se desdobram algumas reflexões graves, de natureza científica e/ou filosófica. Porém, se em Sábado havia certa artificialidade na maneira como tais digressões se insinuavam na trama principal, em Solar o tom ensaístico é menos dispersivo e muito mais funcional. A pesquisa de McEwan se faz notar em cada página, e parece ter sido minuciosa: das “locações” do romance aos conceitos científicos, desenvolvidos na explanação de um ambicioso experimento, que promete resolver o problema dos combustíveis no planeta. O importante é que essas informações não surgem soltas na narrativa, como demonstração inócua da erudição do autor, mas integradas à trama.

O romance é protagonizado por Michael Beard, um físico renomado, agraciado com um prêmio Nobel, mas que há décadas não realiza um trabalho relevante, e não se mostra muito preocupado com o destino do mundo, seja político, econômico ou ecológico. Baixo, gordo, glutão e à beira de uma velhice não muito saudável, Beard enfrenta uma crise pessoal nunca antes experimentada: pela primeira vez em cinco casamentos, ele é a vítima do adultério. Sua amoralidade no território conjugal não o impediu de ser tomado pelo sofrimento e pela obsessão quando soube que sua esposa, a linda Patrice, estava tendo um caso com o rude pedreiro Rodney Tarpin. Já no campo profissional, o renomado cientista é designado para liderar um projeto pelo qual não possui o menor interesse, o Centro de Energia Renovável. Embora Beard pareça não querer mais do que um lugar tranqüilo onde passar seus dias e continuar lucrando com o já antigo prestígio de seu Nobel, sua equipe conta com alguns jovens estudantes entusiasmados, como o inconveniente e idealista Tom Aldous, que defende ardorosamente a idéia de que novas fontes de energia sustentáveis são viáveis, e podem evitar o colapso do planeta.

Resumido assim o enredo da primeira parte de Solar, o protagonista não parece merecer muito a simpatia do leitor. A imaturidade afetiva de Beard, seus vícios e sua incapacidade de tornar seu trabalho relevante fazem dele uma figura patética e algo desprezível. O que é bom para o romance; afinal, outra grande vantagem de Solar em relação a Sábado é ter se distanciado da solenidade deste, e recuperado algo do bom humor de livros como Amsterdã. Não que o romance seja hilário, longe disso. É verdade que alguns momentos sejam realmente divertidos, principalmente quando nascem da fragilidade e da inépcia dos personagens. Com um requinte de sadismo, pode-se rir, por exemplo, das dificuldades de Beard em urinar na neve, sob temperaturas congelantes. Em outros momentos, porém, essa incompetência sugere desdobramentos tristemente irônicos. Como no episódio em que Beard enfrenta uma feminista histérica, que deturpa as falas do cientista em nome de lugares comuns e intolerantes sobre a igualdade entre os gêneros — e que, exatamente por sua intolerância, não é questionada. É um humor triste, que nos lembra a todo o momento a precariedade do discurso racionalista ou científico, e a sua dificuldade de se impor sobre um emaranhado de discursos prontos, dogmas, lugares-comuns, que dominam a opinião pública e nossos próprios preconceitos. Mais forte do que os fatos ou as evidências são as boas histórias, verdadeiras ou não. Chamar alguém de “neonazista”, como um jornalista faz com Beard, não é menos leviano por causa do uso das aspas “cuidadosamente colocadas”. De qualquer modo, dá uma boa história.

Doce ilusão
O discurso ecológico responde a uma lógica semelhante. Um dos pontos altos do romance é o episódio em que Beard acompanha um grupo de celebridades ao pólo norte a fim de contemplar a destruição do planeta e defender a causa ecológica. A superficialidade dos discursos e a impossibilidade de se organizar coletivamente (ainda que em um grupo reduzido) deixam claro que as boas intenções não salvam alguns ideais da puerilidade. E não disfarçam o fato de que muitos deles podem ser baseados em truques estatísticos vulgares. Ainda assim, a causa é contagiante: nem mesmo o cientista mal-humorado pôde evitar ser “invadido pela doce ilusão de que gostava das pessoas”.

Por isso, Solar não é exatamente um livro sobre ecologia ou física. Seu principal tema talvez seja a dificuldade (ou impossibilidade) de um discurso científico, racional, se fazer valer à coletividade imersa em preconceitos, vícios e nas paixões dos discursos prontos, mesmo os acadêmicos. A certa altura do livro, Beard relata a uma platéia interessada um episódio insólito que vivenciou durante uma viagem de trem. Esnobe, um folclorista presente sugere que tal anedota não passa de uma releitura ou de uma adaptação de uma história modelar presente no inconsciente coletivo. Com uma “teimosia autística”, o tal folclorista recusa-se a acreditar que a experiência de Beard seja verdadeira. Assim como para aquela feminista belicosa, a realidade não passa de uma construção discursiva: “gente fixada na narrativa costumava ter uma visão estranha da realidade, acreditando que todas as versões dela tinham igual valor”. A grande tragédia de Michael Beard é, dizendo-se um homem da ciência, supostamente racionalista, não conseguir viver senão em suas redes de ficções e paixões.

Beard descobre que a racionalidade também é incapaz de combater a imprevisibilidade de alguns eventos. O mundo não está sob seu controle. Em um ponto chave do romance, o físico toma consciência de que “algo impossível havia ocorrido e ele queria fazer com que aquilo desaparecesse, que o relógio voltasse para trás simplesmente porque não podia acontecer. Era improvável demais”. Mas não é possível. A estratégia de Beard será criar uma ficção que torne plausível o inverossímil, mas que não o anule. Por mais que tente arrumar e compartimentar sua vida afetiva e profissional, seus fantasmas virão assombrá-lo.

Durante a leitura de Solar, ocorreu-me a figura de outra grande pensadora, desta vez da área humanística, a escritora Elisabeth Costello, personagem de J. M. Coetzee. A comparação entre os escritores e seus personagens talvez seja descabida, e não pretendo enveredar por esse caminho. Mas Costello é um bom exemplo de como um texto ficcional reflexivo (que no caso de A vida dos animais assume a forma de conferências) pode ganhar feições ensaísticas sem, contudo, se submeter às convenções do ensaio. Costello é uma grande personagem, e suas contradições — afetos, inseguranças, hipocrisias — impedem que suas histórias se encerrem em teses ensaísticas bem delimitadas. McEwan consegue algo semelhante. Mesmo quando o jovem idealista Tom Aldous desfere um longo discurso sobre a viabilidade da energia renovável, sobre as condições do planeta e a responsabilidade dos cientistas, em nenhum momento Solar se entrega a qualquer tipo de tese. Este livro não é um documentário de Al Gore, nem um panfleto contra teorias conspiratórias sobre grandes corporações e segmentos do governo que estariam se aproveitando da neurose ecológica para lucrar. As questões estão todas lá, mas, como toda boa peça de ficção, mediadas por personagens complexos, contraditórios, imperfeitos. Ainda bem.

Solar
Ian McEwan
Trad.: Jorio Dauster
Companhia das Letras
344 págs.
Ian McEwan
Nascido em 1948, o inglês Ian Mcewan é autor de mais de dez romances, entre eles Reparação, O jardim de cimento, Na praia, Amsterdã e O inocente. Foi vencedor do Booker Prize (1998) e do Whitbread Award (1987).
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

Rascunho