Anthony Bourdain foi, antes de tudo, um contador de histórias. Quando ainda seguia uma rotina rígida como chef do brasserie Les Halles, em Nova York, já tinha estabelecido um dia a dia estilo militar artístico: acordar sem o galo cantar, antes da loucura toda que a posição de líder de uma cozinha lhe exigia, e escrever. Nem escovava os dentes, conta ele no documentário Roadrunner (2021), e acendia um cigarro. E depois outro, e mais um, e mais muitos tantos no decorrer da rotação da Terra — sempre acompanhados de seus crunchies, ao longo do dia, como chamava os comprimidos leves para dor; da heroína e pó, nessa época, estava livre. “Felicidade é um novo maço”, dizia sobre seus inseparáveis 20 amigos de filtro vermelho. E corria para o computador, toda manhã, alto e magrão que só, para escrever. O que exatamente, só deus sabe. Nem importa.
O que se sabe é que, quase aos 50 anos e após a publicação do best-seller Cozinha confidencial, Bourdain entrou para um business do qual nutria sérias desconfianças — e quem não? A TV e suas tramoias. Na década de 1990, tornou-se um apresentador de programa culinário de sucesso, e a partir daí emplacou um hit televisivo atrás do outro, século 21 adentro (Sem reservas e Lugares desconhecidos, principalmente, que foi o último). Ganhou mais de um Emmy por sua trajetória como popstar improvável — a mesma que, com o passar do tempo, parece ter sugado sua alma até um nível literalmente incontornável. Mas, até chegar aí, há muita história para contar. E a publicação mais recente dele no Brasil, Volta ao mundo: um guia irreverente, concluída graças à dedicação de Laurie Woolever (Bourdain já estava morto), mostra um pouco do que o cara viveu por quase duas décadas — esteve no mundo inteiro, de Salvador ao Camboja, local que Bourdain sempre quis conhecer por amar o filme Apocalypse now (e o livro do Conrad, Coração das trevas), na condição de estrela midiática.
(Não me sai da cabeça uma piada, e juro mesmo que tentei excluí-la em nome da seriedade, pois sou um cara sério — tanto quanto o Bourdain: Tim Maia, no Rio, foi do Leme ao Pontal, segundo a boa música famosa, e Tony conheceu o mundo inteiro. O que eles têm em comum, nosso querido latino-americano quebrado do soul, preterido pela mídia, com o chef e escritor birutaço do país de primeiro mundo, teoricamente abastado de tudo desde sempre? A quantidade de pó que cheiraram. A droga não discrimina; a comida já é mais seletiva.)
Só que não é simples assim. Verdades absolutas jamais dariam conta de uma personalidade tão complexa quanto a de Tony. Sobre o último título citado dele, Volta ao mundo, há um problema técnico: como resenhar um livro desse gênero, guia de viagem, para um jornal de literatura? O Bourdain torna isso possível, até certo ponto, devido aos comentários que fazia sobre os lugares que visitava e comidas que degustava, em um estilo que tende muito mais ao literário do que ao documental, a exemplo do que fez em Cozinha confidencial, seja fazendo graça ou oferecendo verdadeiros insights que transcendem o local do qual está falando. Tem uma hora que ele compara a experiência de comer uma lagosta com o Led Zeppelin, por exemplo. E outra bem assim, quando está no Camboja:
Se algo profundo não está acontecendo, pelo menos parece que está.
Quanta coisa isso quer dizer? Sobre quem enuncia. Sobre como a gente pode ver as coisas. Sobre como a realidade pode ser modificada de acordo com a visão do protagonista. Sobre seja lá qual questão muito pessoal e introspectiva pintar na sua cabeça ao ler a frase, sem que ninguém tente te induzir a pensar em nada, por mais que talvez eu esteja caindo naquele recurso muito chato do analista de poesia, o cara que muitas vezes arranca leite de pedra só pela pose. Ao mesmo tempo, não deixa de ser um lugar de sofrimento diário, o Camboja, o que dá outros ares à frase do homem: ele não está falando em acontecer coisas boas, mas só acontecer algo. Mas para o americano tosco, como ele mesmo já se definiu, o momento da reflexão foi o ponto zero epifânico, aquele momento joyceano (Tony me odiaria por isso) por excelência — o ponto da inocência, algo assim, talvez por estar muito distante da própria cultura; o ponto, o local, em que pôde se ver nulo, finalmente sem todo aquele peso vermelho, azul, branco e de cartola, muito verde, muito verde, muito verde, nas costas.
Voltando ao guia, quem fica com a parte ingrata, a de documentar, é Laurie — parceira de longa data de Bourdain, na qual ele tinha plena confiança e que teve a triste tarefa de organizar o livro depois do suicídio dele, em 2018, quando Tony resolveu que devia se enforcar em um quarto chique de hotel da França em meio às gravações de Lugares desconhecidos. O tipo que ele mais gostava. Provavelmente um que tinha fontes das quais brotavam champanhe morno, como no episódio em que os Simpsons brincam com o chef (e ele adorou; se não me engano, até dublou a própria voz na animação).
No muito abrangente Volta ao mundo, que transcreve falas que Bourdain fez enquanto apresentador dos programas culinários pelos quais deu voltas e mais voltas na Terra (chegava a ficar, em um ano, 250 dias fora de casa), com uma ou outra alteração textual, Laurie faz o papel de advogada do diabo: coube a ela as descrições secas, técnicas, a respeito de valores, gorjetas apropriadas em cada país, tempo de deslocamento e meios de transporte — ou seja, o lance do “guia” nu e cru, para quem realmente quer viajar e busca informações práticas. Quem ficou com a parte divertida foi Anthony, com falas selecionadas pela Laurie, parecendo um mestre doidão de história, sociologia ou filosofia — ou tudo junto —, destilando suas teorias sobre o local visitado (da América Latina a Ásia) e também sobre sentimentos próprios, enquanto a parceira soa como uma professora chatona.
Tudo isso faz parte da natureza do livro, óbvio, não é literatura nem nada, e nada diz sobre Bourdain ou Laurie — uma gente boa, ao que tudo indica, que aguentou as idiossincrasias de Tony e organizou, com carinho, o livro póstumo. O que dá para afirmar, sem erro, é que o conjunto todo parece um amontoadão de informações dispersas — com depoimentos afetivos, que, aliás, na diagramação da obra cortam o ritmo por aparecerem do nada, de um pessoal que conviveu com o Anthony. Por mais tocantes que sejam, incluindo um relato do irmão dele, não dá para negar que quebram o seguimento da narrativa do nada. Erro da editora? Se é para ter uma crítica, aí está — conferindo mais seriedade à resenha, haja vista que já afirmei ser homem sério nos parênteses sobre Tim Maia.
No mais, acho que o livro (guia, porra) é nada mais que uma porta de entrada para se procurar mais sobre Bourdain, caso você se encante com ele dizendo abertamente que Toronto, no Canadá, é uma cidade doída de feia, cinzenta e obsoleta, ou confessando que depois de comer azeite-de-dendê na Bahia cagou sem parar durante horas — nessas palavras, sim, o tom dele. E que entenda, em geral, e agora sem piadas, que tudo tem pouco a ver com comida, mesmo que pareça muito ser sobre isso. É muito mais sobre comentários sociais pesados e autoconscientes e narrativas tipo crônica despojada, de alguém que curtia muito literatura e cinema. Nas palavras de David Chang, atual chef popstar da Netflix e amigo do falecido: “Quase nunca era sobre comida. Era sobre o Tony tentando ser uma pessoa melhor”.
O que é que vai ser, hein?
Alguma palavra escrita até agora foi sincera? Para mim, não. A vida de Bourdain não é somente sobre o que ele fez para o público aplaudir, como se tivesse sido somente mais um ídolo rico predador, símio treinado (talvez tenha sido, por que não? Por que eu não quero?). Penso assim, romanticamente, fugindo da dita objetividade do texto analítico: a existência dele serve de antídoto e esperança para a minha própria, no sentido de que por meio de Tony é possível saber que dá pra se foder pra caralho, ser um viciado em drogas, pobre, e depois dar a volta por cima — ignorando o final suicida do ídolo, claro, talvez.
No documentário Roadrunner, algumas pessoas bem próximas de Bourdain se pronunciam. Uma delas é de partir o coração: o muito bem-sucedido pintor David Choe, único que — me parece — foi sincero ao falar de Tony. Sincero porque duro, e também por ter sido o único que chorou copiosamente ao final das gravações de um doc que investiga as razões da morte do amigo, verdadeiramente sem tentar ser tendencioso ou qualquer merda do gênero em momento algum. “Não sei onde ele está, mas me decepcionou”, diz Choe sobre o suicídio de Tony e cai em prantos, com soluços e tudo.
Sabe o mais louco? Em talvez o que fossem ataques de mania, considerando aqui diagnósticos oferecidos pelos doutores da saúde mental (arautos da sanidade), Tony chegou a dizer que nunca tinha se sentido tão completo como quando estava preparando aquele churrasco americano caricato para a família (teve uma filha, a Ariane, em 2007) no jardim de casa, com hambúrguer grossão e salsicha na grelha, em oposição ao fato de que na maior parte de seu tempo estava viajando a trabalho.
Ele era feliz assim ou queria muito ser, lutava para tentar emular o sentimento que as pessoas supostamente devem ter em eventos tão supostamente impecáveis como este, o de assar vina no quintal para a esposa, filha bebê e vizinhos ou parentes? Há algo muito estranho nisso, não me engana, não. Ele se dizia “ridiculamente, estupidamente feliz”, assim mesmo exagerado pra caralho, nesses momentos de vida comum em família. Não sei para você, mas demonstrações descabidas assim me põem em alerta. Ainda mais para alguém que, por durante mais de meio século, nunca fez questão de nada disso — ser “ridiculamente, estupidamente feliz”. Que, na real, sempre questionou tudo isso e preferia mesmo era um pico ou uma linha no lugar de qualquer discurso pronto. Não digo que é melhor, o lance da droga, mas me acompanhe: seria, talvez, de alguma forma muito estranha, mais sincero? O lance da droga…
Não precisa ser fã de Bourdain para ser tocado por tudo isso — as ambiguidades, o sucesso controverso, o triste fim, a tentativa de brincar de família. Basta ser humano, acho. Resvalei no assunto do Tony e uso de drogas lá no começo, mas, assim como o Choe, acho que é tópico essencial. Olha o que o cara, que conviveu com Anthony, disse: “As pessoas esquecem que Anthony Bourdain era um junky. Um viciado em drogas”. Sabe do que ele está falando? Heroína na veia, pó aos montes e álcool em quantidades assustadoras. Desemprego, irresponsabilidade, perda de confiança de todos, zero perspectivas. Não se trata de nenhuma brincadeira que o seu ou meu amigo pós-moderno tentando parecer legal, sendo ele nascido em 2000 ou pra frente, esteja fazendo nas redes sociais ou em um grupinho restrito em que venha a se sentir o super-homem do entorpecimento, como se fosse algum mérito bizarro. E o Tony, por volta de 1988, conseguiu se limpar de tudo isso. É mole?
Só me vem à mente que qualquer pessoa que teve ou tem algum problema com drogas (seja lá qual nível for, não é uma competição) consegue entender mais ou menos a incessante busca e eterna frustração — fatal, inclusive — do Tony. Diz o pessoal, no documentário, que ele estava sempre apressado. Para tudo. E que tinha o desejo, passado algum tempo, de sair de onde estivesse; mesmo que não tivesse destino, abrigo, porto seguro, Norte, qualquer coisa para onde ir. Só precisava sair. Depois da completude ilusória oferecida pela substância, nada mais no mundo “real” vai te preencher. Simples assim, sem filosofia difícil nem nada.
O Josh Homme, que você deve conhecer pelo QOTSA (grupo de um disco só, pra mim) e que era amigo do Tony, diz — no doc — que o amigo pensava assim: “A vida é como achar um penhasco de onde valha a pena saltar”. Não combina pra caralho com o Anthony, fã de hotéis chiques, se matando em um deles? O penhasco do qual ele achou que valia a pena saltar: um hotel bacanão, quase como uma última piada sinistra, rindo da própria trajetória que o conduziu até aquele momento de absurdos privilégios, mas ainda assim infeliz. De um jeito muito macabro, não é uma história que faz sentido, a do Tony — como se estivesse sendo construída para acabar exatamente do jeito que acabou, sem tirar nem pôr, sem surpresa?
O Choe, novamente, diz algo muito significativo no documentário: “Pela quantidade de piadas sobre o fim da própria vida, notava-se que ele [Tony] sempre tinha lutado contra isso”. E prossegue, no arremate perfeito — sendo ele mesmo, Choe, um dependente químico em recuperação, ou seja, alguém que entendia os demônios de Bourdain: “Ele fugiu disso a vida inteira, mas você nunca vai despistar a dor”.