Carmen Laforet pertence àquele grupo de escritores notabilizados por uma única obra, que alcançou sucesso graças à confluência de vários fatores, incluindo-se o literário. No caso específico dessa catalã, é curioso que, depois do seu primeiro e famoso romance, Nada, a crítica tenha deixado de se empolgar com os poucos trabalhos que ela publicou – e há certa estranheza na maneira como Laforet acaba enveredando por uma senda de progressivo insulamento. Nem mesmo seu terceiro livro, La mujer nueva, narrativa de sua angustiada reconversão ao catolicismo – que lhe valeu o Prêmio Menorca, o Prêmio Nacional de Literatura e alguns problemas com a censura eclesiástica que vigorava na Espanha franquista -, demonstrou ter força suficiente para não apenas impor-se no quadro da literatura espanhola, mas principalmente convencer a escritora do seu próprio valor. Em 1963 surgiria um novo romance, La insolación, mas a partir desse ponto a voz de Laforet murcha até alcançar o completo silêncio, sem cumprir o plano da trilogia intitulada Tres pasos fuera del tiempo, da qual La insolación seria o primeiro volume. O segundo, Al volver la esquina, surgirá postumamente, em 2004.
Assim, chega a ser desolador que o furacão provocado por Nada não tenha se repetido. Depois de vencer a primeira edição do Prêmio Nadal, o romance, publicado em 1945, ganhou reimpressões quase que imediatas. Mais tarde, em 1948, aReal Academia Espanhola distingue Laforet com o Prêmio Fastenrath, o que assegura ao livro um êxito que repercutiria nas décadas de 1950 e 1960, conquistando, até hoje, leitores e o respeito da crítica.
Sem diminuir o valor da obra, essa reação, quando analisada passado mais de meio século, pode ser facilmente compreendida: na Espanha em que o ódio entre franquistas e republicanos – ou seja, vencedores e vencidos – permanecia latente, com algumas das melhores vozes literárias exiladas, mortas ou silenciadas pela censura, parece natural que a jovem Carmen Laforet e sua personagem/narradora Andrea – ingênua, tímida e frágil, tentando se libertar de uma família moralmente devastada, e ao mesmo tempo ansiando por amizade, amor e segurança – arrebatassem o país no qual os ideais humanistas haviam sido derrotados. Elas se tornaram, sem dúvida, a metáfora de uma Espanha que, apesar da sua destruição e dos miasmas da guerra que também devastara a Europa, buscava renascer.
Pássaros escuros
O primeiro capítulo de Nada já nos mostra a desenvoltura de Laforet. Em meio à chegada solitária na Barcelona noturna, carregando a mala repleta de livros, Andrea registra as primeiras impressões da cidade – intensas, marcadas por um poder de síntese que recupera odores, luzes, sons – e o clima de crescente expectativa, rompido abruptamente, logo no primeiro contato com os familiares, “figuras alongadas, quietas e tristes, como luzes de um velório de interior”. A partir daí, a ansiedade da jovem se transmuta em pesadelo. O apartamento da rua Aribau fede, o banheiro parece povoado de figuras fantasmagóricas e a cama, preparada às pressas, coberta pela manta preta, assemelha-se a um ataúde. Todas as ilusões se desfazem.
A família neurótica que a acolhe vive impulsionada por crises e escândalos. A violência entre irmãos impera. E o drama será levado ao extremo pela crescente pobreza, pela fome. Relacionando-se com desrespeito e cinismo, os parentes se apegam aos seus mundinhos particulares, às suas certezas mesquinhas, afundando cada dia mais. Naquele apartamento se concentram os vícios humanos – e a narradora compara os moradores, acertadamente, aos personagens dos Caprichos de Goya. O texto de Laforet não tem a corrosão, a sátira ou o grotesco das gravuras do pintor saragoçano, mas é igualmente implacável. Angustias, a tia hipócrita e autoritária, é “uma daquelas últimas folhas de outono, mortas na árvore antes de serem arrancadas pelo vento”. Em certo trecho, a narradora lembra: “Vejo que eram como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos arfantes por terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno”. A única que guarda alguma dignidade é a avó, crédula, protegida em seu casulo quase arteriosclerótico, movendo-se pelo apartamento às escuras com “distinção espectral”.
Orfandade
A esses exemplares de uma classe média fracassada, Laforet contrapõe o mundo da universidade, com os amigos igualmente burgueses, mas abastados. Pouco saberemos dos estudos, das leituras de Andrea, mas acompanhamos a vergonha que sente por causa dos sapatos envelhecidos, o sentimento de inferioridade provocado pela pobreza e a renitente mania de presentear a amiga Ena e sua mãe, mesmo que isso signifique não ter dinheiro para comer. É a forma de Andrea mendigar atenção, amor.
A jornada da protagonista oscila entre preservar sua individualidade e construir relações que possam libertá-la da família – e também de seus medos, da insegurança, de suas carências. Sem amor-próprio, porém, ela se torna uma presa fácil das armadilhas que se escondem na vida social. Mesmo a amizade com um grupo de jovens boêmios ricos, supostos artistas, não se concretiza – ao contrário, todos os relacionamentos são pouco profundos, contaminados por um persistente sentimento de inadequação. Os dias mais felizes serão passados ao lado de Ena e seu namorado, Jaime. Andrea se alegra sinceramente pelos dois, mas sente-se deslocada; e, terminados os passeios, ela voltará a experimentar a solidão.
Há uma orfandade que supera o fato de ela ter perdido os pais. Seu desamparo é mais vasto, mais denso. E para amadurecer, Andrea pagará um alto preço, nada aviltante, é verdade, mas constituído por uma série de descobertas dolorosas. E ela só consegue vencer algumas de suas inseguranças e abandonar a família depois de agir exatamente como não desejava: unindo seus dois mundos, ainda que durante um brevíssimo tempo.
A solução para parcela dos problemas de Andrea virá na forma de um convite inesperado, o que interrompe a narrativa abruptamente. Fica-se, portanto, com a impressão de que o processo de amadurecimento não se completou. Ela se despede de nós – e jamais saberemos quais dos seus sonhos se concretizaram. Assim, diferente do que alguns dizem, Nada não é um clássico bildungsroman, pois enfoca tão-somente uma fase crítica da existência, passageira, aquela que ultrapassamos para garantir o direito de entrar na vida adulta.
Nômade
Fernando Valls, professor de literatura espanhola contemporânea da Universidade Autônoma de Barcelona, em artigo publicado no El País, em 23 de março de 2004, questiona-se sobre o misterioso silêncio de Carmen Laforet, do qual falávamos no início desta resenha. Na opinião de Valls, “tem-se a sensação de que, uma vez realizadas as obras que tinham como fundo as vicissitudes de sua própria biografia, ela não foi capaz de obter os mesmos sucessos com a invenção de outras vidas”. Mas o crítico também aponta, com absoluta razão, o caráter ético dessa escritora, salientando a “sensatez” e a “exigência incomuns que ela demonstrou ao reconhecer sua incapacidade para alcançar de novo essa arte sincera, humilde e verdadeira à qual aspirava com tamanho afã”.
Faltam-me elementos para avançar nessas reflexões. Mas tenho a viva impressão de que Laforet passou sua vida em permanente crise, sem jamais encontrar a resposta que pudesse satisfazê-la plenamente. Em 1956, cinco anos depois de reabraçar a fé, ela renunciaria ao catolicismo. E à medida que abandona a escrita, parece navegar sem rumo, nômade em busca de certezas, como se a descoberta de Andrea repercutisse em seu íntimo: “Eu então percebia, pela primeira vez, que tudo segue, desbota, estraga enquanto a vida continua. Que não existe final na nossa história até que chega a morte e o corpo se desfaz…”. Não por outro motivo seu principal romance chama-se Nada. Mas é terrível imaginar que a melancolia ou a sensação de vazio tenham dominado sua existência. Viver imersa em uma atmosfera soturna teria sido um peso excessivo, injusto, para essa mulher cuja voz renovadora conseguiu iluminar a Espanha submersa na cisão e no ódio.