Anotar a si: criar mundos

"Diários" apresentam as inquietações em torno da vida e obra de Sylvia Plath
Sylvia Plath, autora de “A redoma de vidro”
30/08/2018

Ler é meio puxar fios, e não decifrar.
(Ana Cristina Cesar)

“O que impulsiona o artista não é diretamente a obra”, escreveu Maurice Blanchot em O livro por vir, “é sua busca, o movimento que conduz a ela”. Ler Os diários de Sylvia Plath: 1950-1962, organizados por Karen V. Kukil, dá-nos a precisa dimensão da assertiva de Blanchot. Não apenas porque parecem desenhar um contínuo movimento de busca da autora em direção à sua voz e à sua poética, mas também porque é nesse mesmo movimento onde se observa, em paralelo, um intenso comprometimento com a construção de si mesma. Comprometimento que se sugere, com frequência — e como observa Anne Stevenson, uma de suas biógrafas —, por meio de uma “insistência rígida em perfeição absoluta e constante” tanto em sua obra como em sua vida.

Compostos por uma variedade de registros distintos, que se alternam entre descrições meticulosas de sonhos, paisagens e situações cotidianas, poemas, desenhos, meditações filosóficas e literárias, fluxos de consciência e relatos confessionais, além de experimentos em prosa, os diários reunidos nesse volume compreendem os anos de vida adulta da hoje consagrada poeta norte-americana, cuja prática diarística tem início aos 11 anos e seguiu até a sua morte, aos trinta, em 1963. Excetuando-se, no entanto, os dois diários de capa dura escritos por Sylvia Plath durante seus três últimos anos de vida — o primeiro, afirmaria Ted Hughes (poeta com quem fora casada) em 1982, “desapareceu”; o segundo, “o ‘livro de capa castanha’ cujos registros iam até três dias antes do suicídio de Plath, foi destruído por Hughes”, informa a organizadora no prefácio da edição. Incluem-se entre os diários desaparecidos aqueles escritos na época em que eram compostos os poemas de Ariel livro publicado postumamente, em 1965, após o sistemático crivo de Hughes, responsável por apresentar uma edição significativamente alterada com relação à sua proposição original, realizando interferências no arranjo dos poemas e a substituição de treze deles por outros anteriormente omissos.

O volume apresenta transcrições historicamente precisas dos diários da escritora, contextualizadas por acuradas notas explicativas identificando pessoas, lugares mencionados e variantes textuais. Do primeiro ao último diário, lemos registros que atravessam seus anos de faculdade, suas extensas experiências amorosas, seu casamento com Hughes, sua vida profissional como escritora e como professora universitária.

A importância dos diários para Plath é clara desde as primeiras entradas, seja pelo fôlego com o qual sustenta alguns registros ou pelos momentos em que explicita o seu entusiasmo com a prática da anotação: “Amo este caderno, a ponta preta da caneta deslizando sobre o papel liso”, lê-se em determinado trecho. Ou então: “É impossível ‘capturar a vida’ se a gente não mantém diários”. Nota-se, aí, como vida e escrita eram, para Plath, mutuamente constitutivas, sendo o manejo de suas experiências materiais incontornáveis à sua produção poética; e, igualmente, a sua ideia da escrita como um “modo de organizar e reorganizar o caos da experiência”: “Recriar a experiência vivida: isso é renovar a vida”, pontua em 1957.

Anotar extrapola, nesse sentido, o tom secreto e confessional atribuído pelo senso comum ao diário íntimo, atuando como um processo tenso de exteriorização capaz de reformular outros mundos, e a si mesma, a partir da experiência vivida. Para Roland Barthes, o processo de anotação, enquanto gesto que antecede a escrita de um romance, mobiliza diferentes temporalidades tendo como ponto de partida o presente da experiência: “Pode-se escrever o presente anotando-o — à medida que ele ‘cai’ em cima e embaixo de nós”, assinala o autor francês em A preparação do romance. A essa relação conflituosa entre tempos distintos que recaem sobre a autora e a anotação — as lembranças (passado), o gesto da escrita (presente) e a sua intencionalidade (futuro), soma-se a indeterminância do que se afigura enquanto real. Se para Plath “a realidade é o que eu crio”, e “poemas são monumentos ao momento”, o que os diários se nos apresentam é uma multiplicidade de representações de seu mundo individual e dos testemunhos que, constantemente, e de modo variado, fazia de si e de sua ideia de arte. Representações como atos de invenção e autoengendramento.

Talvez não seja de todo exagerado ler em seus testemunhos uma forte associação entre escrita e um empreendimento de saúde; de uma “frágil saúde irresistível”, como nos diria Gilles Deleuze em A literatura e a vida, que provém do fato do escritor — pensemos aqui em Sylvia Plath — “ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis”. Tal associação parece elucidar-se, à guisa de exemplo, ao entrarmos em contato com uma entrada de abril de 1956, quando Plath, então com 23 anos, pontua com segurança: “Seja estoica quando necessário & escreva — você viu muita coisa, teve sentimentos profundos & seus problemas são suficientemente universais para se tornarem importantes — Escreva —”. E, ainda de modo mais enfático, neste registro de 1957:

Minha saúde é criar histórias, poemas, romances, da experiência: é por isso, ou melhor, é por isso que é bom que eu tenha sofrido & descido ao inferno, embora não a todos os infernos. Não posso viver só pela vida: mas sim pelas palavras que detêm a torrente. Minha vida, sinto, não será vivida até que haja livros e histórias que a revivam perpetuamente no tempo. Esqueço-me com excessiva facilidade de como era, e me encolho horrorizada com o aqui e agora, sem passado nem futuro. Escrever rompe os túmulos dos mortos e os céus dos quais se ocultam os anjos proféticos. A mente faz e acontece, tecendo sua teia. (Grifo da autora.)

Exagero
Nos primeiros diários, ainda aos 18 anos, embora se assuma vulnerável e com falta de fé em si mesma, chega a exagerar na própria arrogância como um “disfarce para não ser acusada de sentimentalismo, pieguice ou ardis feminino”. Reflete, nesse período, sobre as pessoas com quem conviveu até então — família, amigos, amores — e credita a elas, em parte, a responsabilidade por ter se tornado quem é. Com o passar dos anos, contudo, observa-se que essa responsabilidade se transfere cada vez mais para ela mesma, e a questão da identidade delineia-se como um problema com cada vez mais frequência: “O que serei? Autora de mim”, afirma em janeiro de 1958.

Da garota prodígio à escritora potencial, acompanhamos seus êxitos, como o sentimento de realização ao casar-se com Ted Hughes (o “perfeito contraponto masculino” de sua personalidade), mas também frequentes frustrações. Em janeiro de 1959, devastada após a recusa de um conto pela Yale Review, afirma que “escrever ainda serve a mim como prova de identidade”. Ter o conto recusado assemelha-se, portanto, a ter a ideia de si própria recusada. Mas os diários também permitem ver uma Plath inconstante e de contradições; mais tarde, escreverá sobre a importância de abandonar o ego e evitar usar “o trabalho como razão para existir e ser eu mesma”.

Como que em um gesto de voyeurismo, ao adentrarmos nos cadernos da poeta também travamos contato com as suas leituras mais marcantes, e com o modo como a leitura de outros autores resultava, quase sempre, em reflexões em torno de seus próprios métodos escriturais. Visualizamos suas angústias diante do peso da tradição, que “oprime”, mas igualmente suas paixões e referências, que eventualmente ultrapassavam o âmbito da literatura: “Sinto minha vida ligada à dela de certo modo”, afirmou certa vez a respeito de Virginia Woolf; “seus romances tornam os meus possíveis”. Tais referências passam por autores e autoras tão seminais quanto e. e. cummings, Dostoievski, Elizabeth Bishop, Charles Dickens, Louis Untermeyer (“prosa tensa, frugal, lúcida”), D. H. Lawrence, William Faulkner (“embriagante”), J. D. Salinger, James Joyce, Ezra Pound e Marianne Moore — com quem, aliás, veio a decepcionar-se após uma breve troca epistolar, quando Moore, em resposta aos poemas de Sylvia Plath acompanhados de um pedido de referências para uma bolsa de estudos, envia “uma carta ambígua, estranha, maldosa”, e com comentários “demonstrando apenas muito desagrado”.

Em meio à profusão de registros e temas de que se constituem os diários, destaca-se o profundo senso de responsabilidade de Sylvia Plath ante a poesia e a ideia de “ser escritora”, que emerge em repetidas meditações em torno de seu ofício (ser uma “artista com as palavras”), autocríticas (muitas vezes excessivas) e em sua busca, “enquanto tiver alento no corpo”, pelo “caminho mais difícil, à moda espartana”. A excelente tradução de Celso Nogueira torna visível, além disso, o extremo rigor com que Plath manipulava as palavras. A esse respeito, a poeta chega a afirmar: “Mas faço questão de explicar por que uso as palavras, cada uma delas é selecionada por uma razão, talvez não seja ainda a melhor palavra para meus propósitos, mesmo assim foi escolhida após muita deliberação”.

Antes de buscar com os diários o preenchimento de lacunas biográficas da autora, ou mesmo quaisquer respostas a questões insistentemente colocadas sobre sua obra e vida — incluindo aí o já amplamente comentado episódio de seu suicídio —, talvez interesse mais resistir à verve mistificadora e ao impulso interpretativo em seu entorno rumo a aproximações mais eróticas, menos deterministas, da inteligência e graça que despontam de seus escritos íntimos. Há, pois, nesses escritos, algo que pulsa para além do sentido e que pode ser melhor experienciado se interpelado com atenção e em ritmo lento; distante, enfim, daquela posição ansiosa que busca logo atribuir aos objetos o seu significado, o seu enquadramento. Como se verá, Sylvia são muitas.

Os diários de Sylvia Plath: 1950-1962
Org.: Karen V. Kukil
Trad.: Celso Nogueira
Biblioteca Azul
824 págs.
Sylvia Plath
Poeta, contista e romancista, Sylvia Plath (1932-1963) nasceu em Boston, Massachusetts, EUA. Formou-se na Smith College, em 1955, e continuou seus estudos na Universidade de Cambrigde, na Inglaterra. Sua obra abrange contos, poemas e seu único romance, A redoma de vidro. Em 1982, a poeta foi agraciada com o Prêmio Pulitzer póstumo pela antologia The collected poems.
Rodrigo Carrijo
Rascunho