No começo de 2020, recebi uma oferta para fabricar cerveja para uma grande rede de lojas, que queria vender bebida de qualidade — artesanal de verdade, com aquela sujeira de lúpulo e malte no fundo — para seus clientes e colaboradores. Então era uma boa oportunidade pra minha cerva começar seu domínio no mundo cervejeiro-capitalista.
Esse convite foi o start para largar o trabalho que tinha e me dedicar ao meu projeto alcoólico… ou melhor, cervejeiro-empresarial. Imaginei: ficar fazendo cerveja, e bebendo cerveja, entre uma entrega e outra, isso é tentador. Até então eu era apenas um diletante (mas bastante curioso) no mundo de inesgotáveis possibilidades da cerveja. E de uma hora para outra, cairia de cabeça naquele universo etílico.
De quebra, meu novo emprego me daria mais tempo para um monte de coisa, inclusive a leitura. Essa guinada coincidiu com o começo do fim do mundo (a pandemia mais terrível dos últimos 100 anos). Era hora de começar a tirar da estante aqueles livros que pacientemente repousaram por anos na prateleira. E eram muitas obras à espera de um milagre.
Havia chegado a vez d’O arco-íris da gravidade, do senhor Thomas Pynchon, que neste mês está completando 84 anos.
Já tinha lido outros livros desse autor que é um fetiche pra muitos leitores no mundo. Passei pelo Leilão do lote 49, Vício inerente, Contra o dia, O último grito e V. — não nessa ordem. Bem, para além das histórias, pude notar, a partir dessas experiências, que as traduções eram bem diferentes, e parecia haver “muitos’’ Pynchons no Brasil. Uns mais comedidos, outros mais soltos na linguagem. Mas isso não vem ao caso agora. O fato é que eu queria ver qual era a do livrão considerado o melhor trabalho do velho Pynchon.
Acabei fazendo uma espécie de diário da leitura. É mais ou menos confiável, porque ultimamente não tenho acompanhado tão de perto o calendário. Mas, claro, são apenas os highlights da leitura.
8 de maio
Só depois de iniciar o livro, me dei conta de que no dia em que abri o livro, o escritor estava de aniversário. E quando comecei a ler o romance, estava em um estado de espírito ótimo. Sentia uma sensação de liberdade, de que poderia começar a fazer coisas realmente importantes em minha vida. Então, a boa vontade com o livro não poderia ser mais alta. A narrativa começa de forma bem maluca, como sempre alertam todos que leram o romance (principalmente aqueles que naufragaram), com uma descrição de um tal Café com Banana, lugar frequentado por alguns personagens que acompanharão a trama toda, e outros que vão desaparecer, assim como o próprio Café, que, depois de um grande início, é esquecido.
Mas digo logo de cara o que todos devem saber: é preciso entrar na vibe do livro, como qualquer livro, aliás, mas neste em especial, caso contrário, é aborrecimento na certa. E a leitura já era, vai ser trocada por algo mais palatável, pra desintoxicar. É o que os entendidos chamam de “pacto com o leitor”. Aqui é preciso um baita pacto, uma parceria, um caso platônico, uma suruba cognitiva… A leitura desse livro precisa mesmo ser amarrada. É como se o senhor Pynchon dissesse “acredite nas minhas palavras e você será recompensado”. Tipo um preto velho te orientando na macumba.
Ao começo turvo, logo se agarra uma narrativa ainda mais embaçada, com cenas e diálogos em uma tal Seção Psi, um agrupamento de notáveis empenhados em desvendar a anomalia de Tyrone Slothrop, que teoricamente é a figura central do romance. Trata-se de um americano servindo na Inglaterra na Segunda Guerra Mundial que tem o estranho poder de prever aonde os foguetes tipo A4 vão cair. Toda vez que isso vai acontecer, Slothrop tem uma ereção — não é premonição, é ereção! O que, mais pra frente, vai lhe render o apelido de Homem-Foguete. Roger Mexico (sem acento), um estatístico, e Pointsman, espécie de cientista, são alguns dos profissionais empenhados em entender Slothrop. No entanto, o outro lado, os nazistas, também está se esforçando para desvendar o mistério da ereção slothropiana. Bem resumida, é essa trama do livro.
9 de maio
Não há um perfil psicológico de Slothrop no romance. Você não vai encontrar um capítulo sobre como era o pequeno Slothropinho vivendo na América dos anos 1920 (a história se passa antes, durante e depois da Segunda Guerra). Esse perfil é como o próprio livro, desconexo, híbrido e incompleto. Ele é construído de maneira “picotada”, com uma elucubração aqui e outra ali. Por exemplo, lá pela página 90, a vida amorosa de Slothrop começa a aparecer na figura de Katje. Holandesa, aparentemente ela é uma espiã que havia se infiltrado no lado alemão para obter informações sigilosas. A gata vive com um homem em uma espécie de abrigo. Fazem parte da trupe que quer entender Slothrop. Katje quer tanto entendê-lo que acaba transando com o herói.
É como se o senhor Pynchon dissesse “acredite nas minhas palavras e você será recompensado”. Tipo um preto velho te orientando na macumba.
10 de maio
Estava ocupado o dia todo, fui tratar da importação de maltes e lúpulos, e depois que acabei meu trabalho, no começo da noite, resolvi fazer uns drinks para desanuviar. Os coquetéis com frutas são sempre os meus preferidos, mas naquele dia, a estrela foi um drink das antigas que recentemente foi promovido a bebida cool. É o Negroni, uma porrada de álcool no fígado, que não é pra amadores. A parada é bem forte, porque todos os ingredientes são muito alcoólicos. Pra quem não conhece:
Negroni
30 ml de gin
30 ml de vermute rosso
30 ml de Campari
Melhor jogar tudo em um mixing glass (jarra pequena) e misturar bem, com muito gelo. Depois é só coar e passar para o copo com um gelão de responsa. Aí, finaliza com uma casca de laranja pra fazer uma graça. Nesse dia, nem preciso dizer que não abri O arco-íris.
11 de maio
Estava meio de ressaca e achei que não iria rolar leitura, porque todos sabem que o álcool é inimigo da concentração, apesar de alguns poetas “marditos” insistirem no mito de que literatura e bebida compõem uma simbiose perfeita, que “inspira” (vixe!). Mas naquele sábado, fui surpreendido. Depois de bater um McDonald’s (via drive in) bem gorduroso com meus filhos em uma tarde ensolarada, parece que a batatinha frita me reanimou e curou todos os males que o Negroni havia me causado na noite anterior. O lanche tinha me encorajado a pegar O arco-íris em um dia que estava fadado a não ser produtivo. Fui recompensado com uma das melhores passagens do livro. Quando Pynchon estava apresentando Katje (daquele jeito que não parece que está apresentando), ele conseguiu encaixar a história de um antepassado da moça. Uma das qualidades mais interessantes de Pynchon como narrador: ele é uma espécie de ilusionista, você está acompanhando uma situação, e quando se dá conta, está lendo outra história. Ele deu um salto, e você nem percebeu. Frank von der Grow é um ancestral de Katje que desbravou as Ilhas Maurício no século 18. Ele chegou à ilha em um navio cheio de porcos vivos, e ficou “perdido” por 13 anos. A saga de Frank, que dura umas 20 páginas, é divertida e interessante. O cara era o maior fanfarrão e certamente merece lugar de destaque entre os personagens periféricos do livro. Pynchon manda ver uma aulinha fake, mas bastante crível, de História. Frank era um desbravador como tantos que passaram por terras inóspitas, como o nosso Brasa. Depois da leitura, fiquei sabendo que Sérgio Sant’Anna tinha morrido, vítima da peste. Não tive ânimo pra mais nada.
12 de maio
Lá pela página 120, o pica do livro, Slothrop, ataca novamente. Desta vez a vítima é a gata Darlene. Os dois estão na casa de uma misteriosa senhora chamada Quoad, doceira especializada em guloseimas aparentemente alucinógenas. Esse trecho, para ficar na analogia dos doces, é delicioso. Muito bom mesmo. Slothrop começa a tossir e a senhora Quoad oferece uma pastilha chamada Meggezone. O herói não se faz de bobo e manda ver o remedinho.
O efeito do Meggezone é como se uma montanha suíça desabasse na sua cabeça. Estalactites de mentol imediatamente começam a se formar no céu da boca de Slothrop. Ursos polares começam a escalar os gélidos alvéolos de seus pulmões. Seus dentes doem só de respirar. Mesmo pelo nariz, mesmo afrouxando a gravata, enfiando o nariz dentro da camisa verde-oliva. Eflúvios de benjoin penetram-lhe o cérebro. Sua cabeça flutua numa auréola de gelo.
Poesia pura! É um dos momentos Alice no buraco do coelho. Depois dessa breve alucinação, Slo e Darlene caem na cama para uma fodinha. E logo a ereção do herói está novamente a serviço da guerra, anunciando que tem foguete novo no céu da Inglaterra.
18 de maio
Bloomsday. Acordei e vi em um canal gringo uma matéria sobre Ulysses. Talvez pela proximidade do dia 16 de junho, o diretor de programação teve a ideia de veicular o material, afinal, é tempo de reprises na TV. E não precisa de efeméride pra fazer isso. Foi-se o tempo. Agora todo mundo se vira com o que tem. É jogo de futebol antigo, novela, luta, receita de bolo… Mas voltando ao Bloomsday, o conteúdo da reportagem era bacana, mas sem muitas novidades — e isso ainda é possível? Não sei se algum acadêmico já fez essa relação entre o livro de James Joyce e O arco-íris da gravidade (aliás, se o senhor Pynchon falasse, será que comentaria algo sobre a influência do irlandês em sua obra?), mas pra mim nesse dia soou um pouco óbvia a comparação. Aliás, antes mesmo de começar O arco-íris, dava para perceber que encontraria um pouco de Ulysses ali. Claro, o joyceano radical vai dar risada e dizer que TODO livro depois de Ulysses deve algo a Joyce. Talvez seja verdade, mas alguns livros devem um bocado a mais, acredito. O arco-íris está na lista. A ideia de colocar diversas formas narrativas dentro do romance, um humor fino, mas tão fino que poucos leitores entendem e a ideia de brincar o tempo todo com a linguagem, em uma narrativa nonsense, são algumas características que unem esses dois livros. E incluiria um terceiro livro: Graça infinita, de David Foster Wallace, que usa artifícios muito semelhantes para contar a história louca da família Incandenza. Mas, nessa comparação Ulysses-Arco-íris, o senhor Pynchon se beneficiou da indústria da cultura de massa, que foi incorporada em seu texto e deu a ele um caldo muito interessante. Isso o deixa mais “atual”, talvez… Coisa que o seu Joyce não pôde fazer, pois “só” tinha a seu favor piadas obscuras da Irlanda do século 18. Então esse dia valeu mais para essa reflexão nem um pouco singular, mas que parecia necessária para absorver a leitura.
22 de maio
Cena impagável de sexo entre Slothrop e Katje. O herói perde as calças — alguém roubou — e segue em uma caçada só com uma capa. Slothrop tem um amigo invisível, que atende pelo nome de Stephen Dodson-Truck, que lhe diz coisas ininteligíveis. Ele se materializou enquanto Slothrop estava lendo quadrinhos do Homem-Borracha. Mais nonsense impossível!
25 de maio
Depois de divertidas páginas de sexo, alucinações, psicodelia e escatologia, a narrativa entra em uma fase mais “séria”, em que Slothrop vai atrás de um tal Imipolex G, componente dos foguetes jogados na fuça dos ingleses. No centro dessa subtrama, está um tal Tchitcherine, russo cuja mulher é “faturada” pelo herói do livro, o próprio Slothrop. É tudo muito louco, com informações demais, com nomes alemães demais (com consoantes demais), segredos demais e paranoia demais. Mas aos poucos, o caos vai fazendo sentido.
O conselho que dou a quem pretende ler O arco-íris é não tentar fazer muitas conexões e se deixar levar pelos cenários ilimitados de estranhezas e devaneios febris de Thomas Pynchon.
28 de maio
Chego à metade do livro, mais ou menos. É quando aparece uma tribo da África, os hereros, que vivem no subterrâneo, não entendem o cristianismo e conservam bizarros costumes sexuais. De algum modo, que não fica muito claro, esse povo está ligado à guerra, que está no centro da trama do livro. É praticamente impossível fazer uma leitura cronológica das tramas e subtramas d’O arco-íris. Em um trecho, Slothrop está fugindo de um certo coronel Marvey. Slothrop está em cima de um balcão e joga uma torta na cara do coronel, que está em um avião! Esse certamente é um dos trechos mais doidos do romance, com viradas narrativas intempestivas, fluxos de consciências em forma de ensaios de Slothrop, cenas bizarras e estranhas…
30 de maio
Tentei ler, mas não lembrava mais o fio da meada. O trecho em que seguia, não estava fazendo muito sentido. Tive que retornar umas casinhas. E era sábado, estava sem saco pras pirações do senhor Pynchon. Aproveitei melhor o dia assando uma costela no forno e abrindo um vinho. Tomei a garrafa toda sozinho, como manda o receituário do bom isolamento.
3 de junho
Desde que foi lançado, em 1973, O arco-íris da gravidade tem sido um desfio não só para leitores e fãs de Pynchon, mas também para a crítica. Como um livro tão complexo e radical virou uma febre para milhares de leitores no mundo (no Brasil talvez seja mais prudente falar em centenas de leitores!)? É o que resenhas e textos críticos tentam responder ao longo de quase cinco décadas. Eu não sei também. Mas se é para arriscar, talvez a resposta esteja na própria estrutura narrativa do livro, em que tudo é misturado e processado de uma forma que o leitor não consegue ter certeza de nada, mas ao mesmo tempo tem a seu dispor um rol enorme de possibilidades interpretativas. O que parece sonho pode ser uma história real; o que parece real pode ser pura paranóia; o que parece uma dissertação séria baseada na ciência pode ser picaretagem verborrágica. E assim por diante. Há um infindável embate entre objetividade e subjetividade no romance. Além do mais, a temática multidisciplinar do livro, mesmo de uma maneira caótica, abre o leque do leitor, sem dúvida. E há o evangelho pynchoniano, que aparece em todos os seus livros, em que o cidadão das grandes metrópoles está sempre acossado por uma força estranha e velada, que pode ser o Estado, a indústria farmacêutica, uma entidade espiritual, a cultura de massa ou mesmo a internet, como em O último grito, romance em que o escritor tenta explicar os dias atuais descendo até o buraco negro da deep web e embalando tudo em uma sensível crônica de costumes. Mas tenho certeza de que se o autor lesse isso que acabo de escrever, reprovaria totalmente…
7 de junho
Fiquei uns dias sem abrir O arco-íris porque tive alguns probleminhas de ordem pessoal. Um lance amoroso. E o isolamento prolongado me deixou um pouco suscetível. Resolvi então pintar as portas da minha casa, como se fosse uma “terapia”. Foi bom, mas senti falta do Arco-íris e de Slothrop.
11 de junho
O conselho que dou a quem pretende ler O arco-íris é não tentar fazer muitas conexões (há uns doidos de internet que fazem isso com todos os livros e tramas de Pynchon, mas acho um pouco demais, porque talvez nem o próprio autor saiba explicar tudo que acontece em seus livros…) e se deixar levar pelos cenários ilimitados de estranhezas e devaneios febris de Pynchon. É como tentar ordenar os pensamentos em um sistema cartesiano durante uma viagem de LSD. Tudo se despedaça, os padrões de pensamentos vão para as cucuias. Simplesmente não dá para colar as coisas. É um esforço inócuo…
17 de junho
“Como vocês sabem, tenho feito umas pequenas viagens ultimamente”, anunciou o personagem Bland na presença dos filhos, que vieram de longe só para ouvi-lo. Ele se referia a experiências “fora do corpo”, como se pudesse ir para o além mesmo estando vivo. Então ele anuncia que fará uma viagem definitiva, e aquele momento era de despedida. “Bland entregou-se ao regaço do sofá pela última vez, e fechou os olhos com um sorriso vago… Depois de algum tempo, sentiu que estava elevando-se.” Essa história aparentemente não tem a ver com a estrutura narrativa do livro, mas é uma espécie de viga que ajuda a construir o alicerce da prosa pynchoniana. Como Bland, há o rato profeta de V., o cachorro que lê Henry James em Contra o dia e o “nariz de aluguel” Conkling Speedwell, de O último grito. Todos pitorescos e às vezes quase imperceptíveis, mas também essenciais pra compor a “fauna” romanesca.
20 de junho
Os personagens “principais” do livro começam a regressar.
22 de junho
Nas últimas 100 páginas, o nível de nonsense se esgarça. Quem dá as caras é Lord Byron. Mas ele não chega na pele do poeta romântico inglês. Vem travestido de… Lâmpada. “O problema de Byron é que ele é uma alma velha, muito velha, trancafiada na prisão de vidro de um Bebê de Lâmpada”, diz as primeiras linhas da biografia de Byron, a Lâmpada, que se estende por dezenas de páginas. O fim de Byron é ser “cagado” e ir parar no esgoto, depois no mar, até ser resgatado por um padre.
24 de junho
A busca pelo estudo do comportamento de Slothrop e da engenharia do foguete nazista segue seu curso até o fim da narrativa. Uma das últimas cenas é sobre a mobilização de muita gente em volta da montagem do foguete 00001. Aparentemente, o ciclo narrativo se fecha, sem se fechar de fato. As pontas soltas são tantas que é melhor nem tentar achá-las. A lógica sem lógica dos desenhos animados talvez seja uma chave para entender esse livro. Afinal, qual a diferença do Titio-avô, personagem do desenho homônimo que eu e meu filho vemos toda manhã, que entra no próprio corpo e lá dentro dança em cima de seu coração, e a história de um homem que consegue prever a rota de foguetes por meio do próprio pau? Logo, assistir ao Titio-avô é tão complexo quanto se embrenhar em um dos livros mais experimentais do pós-modernismo do século 20? Não, ainda que muitas vezes Pynchon se guie pela lógica do lixo cultural que nos é entregue pela televisão, cinema e agora internet.
O puzzle amalucado de Thomas Pynchon teria tudo para transformá-lo em um lunático, um escritor exótico que não diz nada com nada, como tantos por aí. Não fosse por um detalhe simples, mas que segue como o grande mistério da criação da grande prosa ficcional: fazer com que devaneios ganhem sentido por meio da linguagem.