Apenas quando um homem doma a intransigência profunda das palavras, ele se torna de fato um escritor. John Cheever é um desses homens que sabe dobrar, torcer, aplainar palavras e, assim, tornou-se um escritor que, como bem reparado há bastante tempo por John Updike, escrevia “como com a pena da asa de um anjo”. Updike só esqueceu de dizer que, em geral, Cheever preferia usar a pena de um anjo negro.
Não se questionando formalmente sua “prosa invencível”, os 28 contos de John Cheever debruçam-se muito mais sobre demônios do que sobre momentos poéticos ou gloriosos da condição humana. Escritores sabem que a obsessão é a raiz da literatura: então, tudo aquilo que lhe for recorrente, repetitivo, incômodo, é a sua matéria-prima para escrever. Como Charles Bukowski adverte, em seu poema Então você quer ser escritor?:“se isso não queima dentro de você/ apesar de tudo/ não escreva./ a não ser que venha sem aviso do seu/ coração e sua mente e sua boca e suas vísceras,/ não escreva”.
Utilizando a mesma dicção tradicionalista, intensamente descritiva e profusa em palavras, típica dos escritores do século 19, John Cheever retira das próprias vísceras a sua temática essencial, a sua obsessão, na qual também repousa uma das questões norte-americanas: o aspecto financeiro como régua última do ser humano, e o álcool como a melhor forma de anestesiar essa constatação.
Seus personagens sempre são talhados de acordo com suas classes: os pobres esperançosos, a classe média invejosa, os ricos falidos, os novos-ricos torpes, os novos-pobres amargurados — e quase todos enfrentando o alcoolismo, transitando entre o gim e o uísque. Assim, à exceção de alguns contos, é a mesma história que se repete, vinte e oito vezes.
Para não criar suspense, os contos de Cheever que sobressaem da coletânea são O bicho da maçã, no qual ele mesmo se reclina no divã e faz o seu mea culpa ao questionar o próprio prazer de ver algo de errado no outro, a satisfação de descobrir o que há de podre por trás do sucesso do vizinho, chegando por fim à constatação de que “o bicho da maçã estava mesmo é no olho do observador”; em Miscelânea de personagens que ficarão de fora, evidencia-se o nonsense literário numa espécie de cenas de cinema que não entraram na edição final; e no conto O general de brigada e a viúva do golfe, em que Cheever emprega seu humor ácido e monta cenas impagáveis e hilárias sobre o objeto de desejo que (ainda no século 21, por incrível que pareça) representa, nos Estados Unidos, um abrigo antibombas instalado no jardim.
Mesma história
Nas demais histórias, Cheever escreve soberanamente sobre o exato momento em que esperanças se exaurem e sonhos se esvaem para nunca mais, escreve magnificamente sobre a mediocridade e, exceto alguns brilhos no leito do rio de suas palavras, o que resta é uma repetição na temática, no pano de fundo e nas circunstâncias de vida dos personagens. Parece que todos os contos refletem a mesma história, pelas mais diversas formas contadas.
E qual seria essa história? O retrato, visto ou imaginado por Cheever, de toda uma nação movida a álcool e estupefacientes que abrandem os sentimentos de vazio, fracasso e desidentificação impressos pela corrida capitalista nas almas de seus cidadãos. No caso norte-americano, há ainda alguns requintes de crueldade, uma vez que o sucesso financeiro, para além de significar a mera perspicácia, tenacidade ou sorte empresarial, se une a um sentimento quase religioso de conformidade com os desígnios divinos de abundância e agraciamento, o dinheiro correspondendo à bem-aventurança das religiões herdeiras do luteranismo e do calvinismo. E, finalmente, a natureza geralmente é chamada de forma magnânima e divina por Cheever, tanto para ilustrar o contraste entre a abundância das belezas naturais e a torpeza dos sentimentos humanos como, ao contrário, para potencializar sentimentos de tristeza, solidão e amargor.
O que fica evidente, de todos os contos selecionados entre aqueles publicados na revista New Yorker nos anos 1960 e 1970, é a revelação de que então já se encontrava em xeque o american way of life. Os homens são praticamente emasculados pelo dinheiro ou pela família — pois não há sexo em nenhum dos contos, além do sexo adúltero — e profundamente recalcados pela perda da juventude, sem virilidade, pujança, força ou determinação, reduzidos às suas contas bancárias e aos seus trabalhos escravizantes. Já as mulheres se encontram sempre rebaixadas a uma vida medíocre e hipócrita, entre fofocas e atividades sem valor, lutando contra o curso do tempo a lhe roubar as jóias da beleza física, e lidando com a falta de identidade decorrente da ausência de poderio financeiro.
No entanto, como Caio Fernando Abreu reconhece, Cheever tem esse raro dom da verossimilhança: “Você lê e sofre. Você lê e ri. Você lê e engasga. Você lê e tem arrepios. Você lê, e a sua vida vai-se misturando no que está sendo lido”. (O Estado de S. Paulo, 5 de agosto de 1987).
Cheever, em entrevista à Paris Review, confessa que, para ele, a verossimilhança é apenas uma técnica para assegurar que o leitor acredite na veracidade do que está sendo contado. No entanto, Cheever reconhece que a própria verossimilhança é uma mentira, e que ele apenas escrevia buscando a probabilidade, revelando “o que parece ser” e não o que “realmente é” — pois isso, a verdade, ninguém nunca poderia mesmo saber com certeza.
Em certo ponto da coletânea, contudo, de fato a vida do leitor vai se misturando no que está sendo lido e, considerando que a leitura de Cheever versa sobre obsessões e demônios, chega certa hora em que é realmente necessário exorcizá-los, sob pena de afundar com eles para os andares mais escuros e sombrios do mal.
No caso de John Cheever, essa pode ser uma tática valiosa, deixando-se à mão algum livro que se ocupe de amenidades e levezas. Os demônios ficcionais de Cheever se instalam nas entrelinhas e trazem o mesmo abandono e desesperança experimentado por Neddy Merrill, O nadador, em cujo périplo o personagem principal vê a própria vida se revelar a cada mergulho, se desmontar a cada travessia e se exaurir no ocaso de uma tarde de outono, de forma que a chegada não é, nem de longe, motivo de vitória, mas a constatação de todas as suas perdas.
Dessa forma maquiavélica, John Cheever consegue igualmente ser genial e demoníaco e é preciso ter bastante cuidado com ele, sob pena de sucumbir definitivamente ao mesmo desânimo dos seus personagens.
Semelhante aos cânones
Contudo, no romance A crônica dos Wapshot — publicado em 1957 e que rendeu a John Cheever o National Book Award de 1958 bem como o título de Tchekhov americano — o estilo do escritor muda completamente para encostar numa prosa assemelhada aos cânones de Hemingway, Thomas Mann, Austen, aliando qualidades de um romance histórico às características de uma saga familiar, aproximando-se dos moldes de Erico Verissimo e (mal-comparando, de) Gabriel García Márquez.
Logo no princípio, tal qual um Gênesis próprio, é apresentada a genealogia completa dos Wapshot desde os primórdios normandos Vaincre-Chaud (“vitória quente”, em tradução livre) e, fixado o ramo específico fundado por Ezekiel Wapshot, emigrante inglês que aportou na América a bordo do Arbella em 1630, a história se desenvolve em torno da matriarca ainda viva, Honora Wapshot, e suas condições para conceder sua rica herança familiar aos primos mais novos. Uma das premissas do livro, também apresentada logo de início, é o hábito dos Wapshot de manterem diários, maneira pela qual se resgataram todas as histórias dos personagens e de seus dramas internos e familiares. St. Botolphs, a localidade em que se desenrola a trama, era “uma velha cidade à beira-rio” e um antigo porto de Boston, no Estado de Massachussets, onde sobrara apenas “uma fábrica de talheres e algumas poucas pequenas indústrias”, uma localidade na qual ainda se vivia da pesca e de um turismo incipiente — com passeios de barco, lojas de quinquilharias e decadentes casas de veraneio. A história finalmente se desenvolve quando Moses e Coverly, dois rapazes provincianos e oriundos de uma família tradicional da cidade, deixam a casa de seus pais e seguem, respectivamente, para Washington e Nova York em busca de emprego.
Neste romance, a classe média americana não aparece com tanta nitidez, tratando-se mais das transformações profundas e das constatações cruéis que serão experimentadas pelos jovens Moses e Coverly, os últimos Wapshot, filhos de Leander Wapshot, primos de Honora. Essa matriarca, muito embora sem marido ou filhos, uma mulher voluntariosa e inflexível, “altiva e absurda” em testamento determinara que todas as propriedades e bens dos Wapshot somente seriam entregues a Moses e Coverly contanto que eles tivessem filhos homens. Se isso não acontecesse, doaria tudo para as obras de caridade (a casa Repouso do Marujo, e outras). A partir daí, riqueza e futuro familiar estando a depender da virilidade de dois jovens, toda a angústia que envolve uma doação condicional seria pouca nos semblantes dos personagens e todos os acontecimentos seriam sempre postos à luz desta sua disposição de última vontade, irrevogável e imperativa.
Enquanto Leander traz um peso de dramaticidade, agarrando-se ao barco S .S. Topaze, no qual ganhava a vida fazendo passeios ao longo do rio na direção da baía de Boston e de suas ilhas, afastando-se de seu passado comprometedor e tentando conviver com sua esposa Sarah, de personalidade estritamente prática e objetiva, os rapazes Moses e Coverly enfrentam a perda da identidade natal nas metrópoles e curiosamente se deparam com dificuldades igualmente surpreendentes e inusitadas no cumprimento dos desígnios da prima Honora e na busca de sua própria realização pessoal e profissional, distantes do ninho familiar e das referências sociais.
O desenrolar da experiência de Moses e Coverly, entremeada com os textos do diário de Leander, quando por diversas vezes se vira em apuros, traz uma idéia de continuidade e permanência da saga dos jovens americanos, para conquistar identidade, pertencimento, lugar, emprego, sobrevivência e, se possível, independência, dinheiro, um trabalho pouco humilhante e alguma estabilidade financeira.
Neste romance, John Cheever exibe com maestria a profundidade de sua narrativa, a destreza na dissecação da psicologia e das personalidades humanas — o que lhe rendeu o título de “novo Tchekhov” —, além do conhecimento profundo da história e geografia dos portos de Boston, assim como revela sua enorme criatividade ficcional na formulação dos diversos personagens que Leander, Moses e Coverly encontrariam em suas ilíadas e odisséias pessoais, ao lado das mulheres por quem se apaixonaram, Sarah, Melissa e Betsey.
O romance prende o leitor de tal modo que a certa altura começa-se a duvidar da própria possibilidade de Moses e Coverly realmente conseguirem fazer algo aparentemente simples — gerar filhos homens para ganhar a fortuna de Honora — mas que, no curso da trama, revela-se uma incumbência extremamente complicada. Com esse suspense, o livro de estréia de Cheever fez tanto sucesso que o escritor precisou dar aos seus leitores o restante da história e findar a saga familiar em O escândalo dos Wapshot, publicado originalmente em 1964.
Nos dois títulos, John Cheever demonstra sua condição de equiparar-se aos grandes escritores do século 20, não só por conseguir domar as palavras ou por descrever com fidelidade a distância abissal entre a realidade de uma cidade pesqueira e daquelas que se tornariam as grandes e hegemônicas metrópoles do início do século 21 mas, sobretudo, pela habilidade em dar esse salto profundo nas esferas mais sombrias do mal que o capitalismo pode imprimir nas almas do povo em que ele viceja com maior força.