Angústia silenciosa

O clássico "Os ratos", de Dyonelio Machado, ganha nova vida com certo descuido editorial
Dyonelio Machado, autor de “Os ratos”. Foto: Eneida Serrano
01/03/2023

Mais do que impactar o tempo de seu nascimento, a grande obra conversa com o futuro, para dar testemunho de um mundo já passado ou para indagar o mundo vindouro com seu próprio testemunho. Os ratos, de Dyonelio Machado passa com folgas por essa prova. Lançado em 1935, mantém interesse vivo, permanente, ainda que discreto. A Todavia lançou em 2022 uma bem-vinda reedição do clássico.

Ao contrário de escritores da mesma geração que tiveram maior impacto imediato e maior força de permanência, por contarem com edição de obras completas bem cuidadas ou por estarem entre as leituras escolares regulares (como é o caso de um Mário de Andrade, de um Graciliano Ramos, de um Erico Verissimo), Dyonelio nunca contou com vetores assim fortes de consagração.

A obra de Dyonelio é relativamente extensa, mas num conjunto irregular. São vários romances, um livro de contos (o volume de sua estreia, em 1928) e algum ensaio; de tudo, apenas dois romances alcançaram leitura significativa — além de Os ratos, há O louco do Cati, de 1942. E nenhum dos dois se oferece com facilidade ao leitor que chega sem certa maturidade pessoal.

O autor teve a sabedoria, provavelmente intuitiva, de combinar enredos de pouca dramaticidade (significativa mas nada óbvia, sem os apelos de um romance histórico, ou de ação, de peripécia, de formação) com uma angulação narrativa singular. Nos dois romances citados, a voz da narração se estrutura na terceira pessoa, mas o leitor não conta com o olhar distanciado de um narrador onisciente, daqueles que entra e sai da interioridade de cada personagem ou que se movimenta entre passado e presente. O que o leitor sabe, ao ler, é quase que apenas o que protagonista sabe, e nos dois casos se trata de personagens de escassa capacidade de reflexão e de compreensão crítica, de mediação entre o próximo e o distante, o trivial e o profundo.

No romance de 1935, em seu raro nome o protagonista evoca uma azia, um daqueles males silenciosos que não matam, mas castigam, em boa analogia com o enredo. (O protagonista do livro de 42 nem nome tem: é “o louco” e “o Cati”, sendo este o nome de sua localidade de origem.) O enredo de Os ratos é simples: casado e pai de criança pequena, Naziazeno deve 53 mil-réis para o leiteiro, que ameaça cortar o fornecimento; essa dívida o faz circular pela cidade (Porto Alegre) ao longo de um dia até finalmente alcançar o valor; na manhã seguinte, acordando, ele entreouve o leiteiro verter o precioso líquido na vasilha; e então ele dorme.

Invisível angústia
Esses elementos, suficientes para dar a moldura do enredo, importam menos que o miolo do relato, o dia que se passa na busca degradada pelo valor. No enunciado, uma crescente e meio invisível angústia está por tudo, na vida daquela infeliz vítima de circunstâncias opressivas, brandas cada uma delas, devastadoras no conjunto, e nunca comandadas por ele; de outro lado, algo como aquela azia silenciosa vai enervando o leitor, presa também ele, em seu cotidiano, de uma vida cujo controle está igualmente longe de sua capacidade de deliberação.

Mais de uma vez, discutindo com alunos na faculdade, vi surgir uma irritação viva com Naziazeno, uma vontade de sacudir aquele pateta que se deixa manipular por tão pouco. Nessas horas, eu tento sugerir que ali está uma forma de espelho: atire a primeira pedra quem de nós não reage como ele ao lidar com suas dívidas, com o carnê de prestações, com a mesquinharia do horizonte de nosso cotidiano.

Talvez por vício nascido dessa mesma sala de aula, me parece que caberia, cada vez mais conforme passa o tempo, um texto de abertura ou algumas notas para dar conta de elementos que uma vez foram nítidos mas agora são perfeitamente opacos. Quanto valeriam hoje os 53 mil-réis da dívida? Quem, tendo menos de talvez 50 anos, quem é que sabe que os leiteiros daquele tempo entravam pela porta dos fundos das casas e vertiam, de um tarro, o tanto de leite que cada consumidor comprava? Que em 1930 as casas não tinham geladeira elétrica capaz de guardar o leite de um dia para o outro?

Agora, com a nova edição, não seria o caso de levar em conta essas lacunas informativas que o tempo cria, oferecendo ao leitor que chega algum aporte elucidativo? Uma prática editorial é dar o texto original nu, sem mais, e o leitor que se esforce. A Todavia não oferece esclarecimentos assim, mas reproduz, como posfácio, um ensaio de Davi Arrigucci Júnior já constante da edição da Planeta, de 2004. Ensaio correto, que oferece bons caminhos interpretativos, mas que nada ajuda nos pontos aqui mencionados.

(Na única nota ao seu texto, o autor do posfácio cita um depoimento de Iberê Camargo, gaúcho como Dyonelio, para abonar a percepção de que a Porto Alegre dos anos 1940 “era ainda uma cidade provinciana e conservadora” quanto aos ideais estéticos. Verdade? Iberê faz um juízo que é, como tudo o mais na vida, discutível; eu poderia lembrar que, nos mesmos anos 1940, Porto Alegre via o florescimento da editora Globo, traduzindo deus e o mundo e publicando escritores ousados, inclusive de vanguarda, como se vê na primeira edição de Os condenados, do vanguardista paulista Oswald de Andrade. Em que ajuda a esclarecer o leitor aquele juízo?)

Descuido editorial
Quanto ao mais, a edição traz o texto integral, como seria de esperar, com um cuidado filológico com estranhas falhas. Não fiz um exame total do caso, mas cito um exemplo. Na primeira página do romance, lemos uma nota, assinada pelo editor, para a seguinte passagem: “Um ou outro olhar de criança fuzila através as frestas das cercas”. A nota diz: “Usar artigo definido como regência da palavra através é um galicismo que está hoje em desuso”.

Bem, é certo esse desuso. Fui consultar outras edições do romance, e, surpresa, todas trazem, ali, a forma “através das frestas”, já com a preposição. Perguntei então a um colecionador letrado, Antônio Carlos Secchin, como estava na primeira edição, e de fato lá está mesmo “através as frestas”.

Ora: se já na primeira página vem uma nota assim minuciosa, que recupera a forma da primeira edição para falar de um problema já solucionado nas seguintes, seria de esperar que o livro todo viesse crivado de outros esclarecimentos para casos análogos. Só que não: esta é a única e solitária nota ao texto, do começo ao fim do livro. Então por que ressuscitar esse problema, só este e não outros que existem (como a atualização ortográfica, entre outros)? Faz algum sentido repor um problema como este, já superado na tradição editorial do romance?

Em suma, a edição do texto me parece andar um pouco errante. Só não é pior do que a primeira frase da orelha, que assim diz, equivocadamente: “Montado num burro, o leiteiro enfurecido vai até a casa de Naziazeno Barbosa cobrar a dívida atrasada”. E aqui retorna aquela minha demanda por esclarecimentos editoriais sobre a época. Como eu vivi o tempo dos leiteiros que iam em casa, sei perfeitamente que o leiteiro nunca montaria num burro — o pobre animal estaria mas puxando uma carroça com os tarros do precioso líquido, como aliás se fica sabendo literalmente já na abertura do capítulo 2, que cita a “carroça de leiteiro”.

Os ratos
Dyonelio Machado
Todavia
192 págs.
Dyonelio Machado
Nasceu em Quaraí (RS), em 1895. De origem pobre, aproximou-se das letras trabalhando como servente num jornal. Psiquiatra de formação, publicou contos e romances, como O louco do Cati, Endiabrados (Prêmio Jabuti de 1981) e Os ratos, sua obra-prima. Morreu em Porto Alegre, aos 89 anos.
Luís Augusto Fischer

É professor de Literatura Brasileira na UFRGS e escritor. Autor, entre outros, de Filosofia mínima —Ler, escrever, ensinar, aprender (Arquipélago).

Rascunho