Angústia frenética

"Esta terra selvagem" relata uma série de ataques neonazistas em ritmo agitado e visceral
Isabel Moustakas, autora de “Esta terra selvagem”
28/07/2016

Esta terra selvagem, de Isabel Moustakas, foi escrito em 11 dias e pode ser lido em apenas um. O fluxo narrativo frenético do romance policial possibilita uma leitura rápida, embora perturbadora.

A história se passa em São Paulo e é narrada em primeira pessoa por João, um jornalista que, repentinamente, se vê envolvido em uma história repleta de assassinatos brutais cujas vítimas pertencem a minorias sociais na capital paulista, como gays, nordestinos, judeus e bolivianos.

A pauta política da perseguição a estes grupos e a crítica direta ao neonazismo poderiam ser o principal foco da obra, mas não é o que acontece. Para mostrar ao leitor a incoerência desse tipo de barbárie, a narrativa se atém à estratégia do choque para atrair nossa atenção. Cenas fortes de agressão, muito sangue e cadáveres são descritas de maneira crua e perturbadora sob a velocidade da voz de um narrador-personagem que preferia não ter visto tudo o que viu. Num compasso de conto e não conto, de queima e refresca, de um passado que dói.

Chamado para entrevistar Marta, uma garota de 16 anos que teve os pais torturados e mortos na sua frente e sofreu inúmeras formas de abuso, o protagonista se assusta com a violência narrada pela jovem e detalha as cenas para o leitor. Ao fim do primeiro capítulo em que isso ocorre, outra parte é aberta com apenas um parágrafo centralizado na página. Ali, ele conta que foi a única pessoa a saber de toda a história e que, após o voto de confiança da menina, ela pede para que ele faça o que quiser com o que ouviu e se mata visivelmente perturbada pelas atrocidades sofridas.

Assustado, o jornalista toma para si a responsabilidade de salvar os próximos alvos do grupo neonazista e começa a investigar os crimes sozinho, correndo riscos e se envolvendo em um verdadeiro dominó de armadilhas. Personagens novos vão surgindo na sequência agitada de uma trama na qual todo mundo é suspeito. Bem aos moldes dos thrillers policiais tradicionais.

Estereótipos
Apesar de estar centrado em temas frescos e amplamente discutidos na atual agenda pública, como a perseguição a grupos minoritários e a violência sexual, o livro não tem muitas surpresas no sentido de estabelecer um debate profundo com relação a estes assuntos, nem no que tange à construção dos personagens com profundidade. A narrativa segue o mesmo movimento, da primeira à última página, com começo, meio e fim e uma história que poderia ter saído de qualquer filme de ação hollywoodiano.

Além disso, por se tratar de um livro rápido e repleto de sobressaltos, ele acaba arrebatando o leitor rumo ao desfecho de forma tão extasiada que perdemos a dimensão psíquica das pessoas de quem o narrador fala. Nem mesmo ele se coloca aberto a análises. E assim vítimas, assassinos e suspeitos são apresentados em sua superfície.

O fato de a narrativa não se aprofundar nos sujeitos não seria algo exatamente negativo se a proposta de arrastar o leitor feito folha por um vento tempestuoso de tragédias que, de tão forte, não o permitisse enxergar mais do que a casca das pessoas descritas, conseguisse explicar sozinha essa particularidade.

Mas o uso excessivo de estereótipos e clichês nos dá a entender que a superficialidade não se consolida apenas nos âmbitos da brevidade e do desespero dos capítulos. Os assassinos, por exemplo, são carecas e usam botas ao estilo skinhead, descrição pouco criativa e estereotipada de um grupo extremista. O jornalista, por sua vez, atende aos quesitos típicos da categoria representada no imaginário popular há pelo menos um século: homem, melancólico, solitário e boêmio e perturbado. A utilização destes chavões é um ponto que teria tudo para amarrar a obra em um nó perdido no lugar-comum. Acontece que estes aspectos não diminuem os grandes méritos do trabalho.

Se por um lado, o livro é claro, rápido e prático, por outro, é forte, pesado e singular, ainda que peque ao se apegar a tipos caricatos.

Pontos fortes
Seria injusto não ponderar os dotes da obra. A começar porque o livro em nenhum momento procura se fazer entender como uma narrativa profunda, subjetiva e analítica. Sua proposta é claramente surpreender como novela policial cheia de ação, mistério e comoção.

E, embora não adentre nos aspectos históricos e sociais que costuram as margens do enredo e não sonde a fundo a personalidade de ninguém, o mal-estar causado pelas nítidas e corridas cenas de selvageria de base radical mostradas a olho nu a todo tempo já desempenha um papel surpreendente de chocar, causar indignação e tirar o leitor de sua zona de conforto.

Outro aspecto que merece atenção é a disposição do texto pelas páginas, que segue a excitação e o choque do narrador frente ao que vivencia e conta. Além dos parágrafos serem curtos, há também páginas inteiras com um só breve relato centralizado no papel, reforçando o estrago imenso que se estabelece no decorrer de cenas breves, como a do suicídio da jovem já mencionada no começo da resenha.

Se por um lado, o livro é claro, rápido e prático, por outro, é forte, pesado e singular, ainda que peque ao se apegar a tipos caricatos para compensar a ausência de definições mais ricas dos personagens.

Anonimato
A orelha do livro é sucinta: há pouquíssimos dados sobre Isabel Moustakas. Nascida em Campinas, formada em Direito e radicada em São Paulo, onde vive com a enteada e o marido. Na internet, a discrição também impera. Existem raras menções a seu nome antes do lançamento de seu romance de estreia e, nas redes sociais, não há nenhum perfil público. Tal mistério unido ao fato de que muita gente achou a obra madura demais para ser de um autor estreante fez com que se cogitasse a hipótese de que Isabel fosse apenas um pseudônimo. Uma incógnita incômoda ainda permanece na cabeça de muitos. Nomes conhecidos, como Luisa Geisler, Antônio Xerxenesky e até o veterano Rubem Fonseca foram mencionados como possíveis autores.

Entre suspeitas e especulações, alguns até arriscam sugerir que tudo não passa de um jogo de marketing da editora. Eu prefiro me atentar aos ganhos que podemos ter com o tal segredo: em uma cena cultural em que a vaidade e embates egoicos chegam a ofuscar a qualidade ou as imperfeições de uma obra, ter a oportunidade de apreciar um trabalho quase anônimo e minimamente longe desta névoa de egocentrismo é um baita privilégio. Sem máscaras, e às margens das enfadonhas polêmicas que limitam o cânone, Esta terra selvagem tem o mérito de ser o que é porque é. Ao menos, por enquanto.

Esta terra selvagem
Isabel Moustakas
Companhia das Letras
113 págs.
Isabel Moustakas
Nasceu em 1977 em Campinas e é formada em Direito. Vive na zona norte de São Paulo com o marido e a enteada.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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