Desde que Mário de Andrade admitiu, em 1931, ter se apropriado dos cadernos do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) para estruturar seu Macunaíma (e praticamente copiar trechos inteiros), a questão da apropriação dos escritos de terceiros no fazer literário brasileiro tomou outra dimensão.
E não se trata de entrar em teorizações que evoquem a polifonia. Não. Refiro-me à presença material dos signos artificializados por outros autores, para outros contextos poéticos, na elaboração de textos novos. Ou seja, não se trata de articular influências de outras vozes, mas sim de trazê-las inteiras, com sua carne, seus sons, imagens e sensações, para produzir sentido num novo contexto, o da literatura contemporânea. É mais do que a dialética moderna sugerida por Walter Benjamin, em que não se rompe a conversa com uma tradição, é algo como recontextualizar o sempre falar da literatura. Recontextualizações que, por sua vez, dão origem a diferentes poéticas, num gesto de elogio à permanência que radicaliza a intuição de que a literatura sempre é uma forma de significação do presente.
Em A esponja dos ossos, a carioca-espanhola Maria Cecilia Brandi faz desse entrelaçamento sígnico, que impele a literatura a dizer de novo, a estrutura de um livro que pode ser entendido como uma espécie de anatomia poética. Ao trazer nos poemas, sem a menor dissimulação, versos e trechos de narrativas de autores lidos e revividos em seu paideuma, a autora parece deixar ao leitor duas possiblidades de leitura bastante distintas: uma em que se tenta ler os poemas à luz de seu diálogo com os diferentes autores convidados para a festa, outra em que se assume a substância porosa que é a literatura e nos liberta para a significação promíscua, como fez Mário macunaimicamente décadas atrás.
Para ler essa anatomia poética de Maria Cecilia, escolho a segunda opção.
O poema de abertura sugere a poesia como algo perecível, que apodrece, putrefaz e deixa como rastro uma estrutura esquelética que, se retrabalhada em seu organismo, pode ser assumida como poema.
[…]
quem sabe o ácido ascórbico
restaura seu organismo
para que os dentes mordam
além de exibir sorrisos
[….]
E se, por sua vez, no retrabalho orgânico junto ao esqueleto não perdermos de vista a natureza esponjosa que tem o osso que suportou o peso da poesia, estaremos aptos talvez a absorver e deixar aparecer em outras formas, outros signos, outras vivências… a poesia da vida ordinária.
Os poemas que Maria Cecilia Brandi selecionou para esse livro parecem oferecer alicerces na vida comum, vista na dúvida de uma criança, numa festa em que há dança, ou no exercício físico que expurga toxinas pesadas do que somos (perecíveis).
Livre para dançar
Sem apelar a imagens abstratas, seus poemas evocam sempre o corpo. E não apenas como se numa dança em que o coração esteja nos pés, “pisando na cara do tempo”, mas também como se mordendo forte com os dentes, fazendo sangrar a gengiva (Ana Cristina Cesar?) para se colocar em estado de comum com o outro. Eis um movimento que o livro parece querer: comungar com as carnes do mundo numa dança sem coreografia, livre, mas não leve. Uma dança que não é festa ou flerte com um mundo que faça sentido, ou seja, melhor, mas sim porque a dança é a única forma de se colocar em ritmo comum com o maior número de pessoas convidadas para a festa. Nessa poética, socializar é deixar o corpo falar livre com a música, já que esta se revela a carne que aproxima os diferentes corpos poéticos ainda não derretidos. Daí a entrada dos signos escritos por outros autores nesse baile de Maria Cecilia. Outros corpos dançando e compondo o escrito ela.
A poesia para Maria Cecilia Brandi parece necessitar de um corpo que toca seus limites, sua exaustão, seu ritmo, seu transe, sua finitude… para então reencarnar-se algum sentido ao esqueleto esponjoso da literatura que não anuncia um fim, mas antes um devir.
O livro articula também essa predisposição em assumir o devir mundo pela poesia a partir da incerteza de uma criança, que sempre metaforiza um desejo de volta aos estados primevos das descobertas humanas.
[…]
às vezes não se nota
que a criança demora
porque está pensando
[…]
Contudo, o consórcio com a infância em A esponja dos ossos revela, na recomposição anatômica do esqueleto, que vai se revestindo aos poucos de carne, ou seja, voltando a ser poesia, um desejo de materialização de memórias e resistência à fugacidade da vida. Um poema que quase encerra o livro, e que se chama Areia, faz ver que se assumíssemos com gestos poéticos nossa vida ordinária — “as coisas têm coração se alguém/ souber contar sua narrativa” —, aliviaríamos quem sabe um pouco a certeza de que, uma vez virada a ampulheta, a areia do tempo vai derreter feito a carne derrete dos ossos mostrando que não passamos de rastros e que se seremos e somos apenas matérias de memórias, que estas resultem de alguma poesia.