Certas semelhanças, no mais das vezes, servem para evidenciar fortes divergências. Isso pode ser comprovado com a leitura atenta de Concerto a quatro vozes. O acanhado volume (devido à representatividade do quarteto) reúne poemas de Adriano Espínola, Antonio Cícero, Marco Lucchesi e Salgado Maranhão. A organização é do acadêmico Domício Proença Filho. Antes que algum espírito-de-porco, geralmente apressado, deduza que desfiarei restrições ao livro sugiro que beba um copo d’água, relaxe e não desista de me conceder o prazer de sua companhia. Concerto a quatro vozes deve ter vários propósitos, mas um deles se destaca: o de dar uma amostra (que, insisto, podia ser mais generosa) da obra desses poetas. Tal objetivo só é alcançado quando resultado de criteriosa seleção — e estamos diante de um desses casos. Não causará surpresa se, saboreada a prova, o leitor arguto passe a remexer prateleiras de livrarias e sebos em busca das obras individuais de cada um desses autores, a fim de conferir suas comprovadas trajetórias criativas. É natural que, numa reunião de poetas, o crítico tenha por hábito escolher o caminho mais óbvio, aquele que conduz às semelhanças, para só mais tarde perceber que essa mesma via também o leva às diferenças. E no caso de Concerto…, elas nos saltam aos olhos, mas — pedido de calma número dois — essas diferenças representam mais uma das qualidades do livro.
Um convite ao leitor: enveredemos pelos aspectos que os quatro poetas trazem de usual em suas obras. Lá estão a solidão, que não é novidade no ramo; a referência ao efêmero; e a presença do mar como ponto de partida — e também de chegada —; além da enorme força imaginativa que os preenche em uníssono. No entanto, e o detalhe é importante, podemos considerar como mais um charme do livro a sintonia lírico/mítica entre Cícero e Lucchesi — apesar dos “quase poemas em prosa” de Cícero, e Lucchesi demonstrar preferência pela frase mais concentrada. Por outro lado, percebemos em Adriano Espínola uma indisfarçável preocupação social, inclusive nos momentos em que o poeta deixa claro que tem consciência dos seus limites. Já Salgado Maranhão opta por não delimitar o perfil humano, permitindo a constatação de uma grave fratura interna em sua obra. A reiteração léxica debilita a força imaginativa e se faz presente nos poemas do quarteto, além de obscuras polarizações, mais visíveis em Salgado, e agravadas por recorrências em que palavra e poema ocupam o centro e a margem, enfraquecendo, assim, a carga metafórica e privilegiando um deslizamento cinestésico que introduz questões sensoriais.
Adriano Espínola apresenta a violência delicada, a vida presa num daqueles quadrinhos vendidos na Feira de Ipanema, reproduzindo aquelas favelas silenciosas que encantam a tantos turistas. Adriano também não passou incólume. Mordeu a isca colorida e se deixou fisgar pela metapoética (impressiona-me os poetas não cansarem dessa prática; haja paciência!), mas sua dicção pragmática não permite atenuantes. Evita o atestado de coisa sublime (“Teu ofício clandestino/ — contrabandista da aurora de que tanto te orgulhas – é falido.”), mas sem fazer da poesia um lamento, confessa seus limites e sua claustrofobia encerrado nas próprias impossibilidades. A individualidade tensionada ao máximo qual o jangadeiro buscando sua ilha. Ou ainda o poema Cebola, “Cortá-la camada/ por camada/ até chegar/ ao centro/ (ao bulbo do nada/ do eu mais/ dentro.)/ Não chorar.”
O poema Resistência tem lá sua parcela de ambigüidade, que permite a confusão entre convicção, imobilismo e resignação, porém não podemos disfarçar, ali, a forte presença do individualismo (pedido de calma número três: favor não misturar com egoísmo). Essa individualidade alcança seu ponto alto quando o jangadeiro ambiciona uma ilha, disfarce da solidão, do isolamento. O que fica nítido em Adriano Espínola é o deambular de seus versos pelas ruas da ausência, da matéria da memória, da saudade, roçando as quinas da metrópole injusta.
O leitor é forçado a atravessar a rua fora do sinal e sob sustos alcançar a poesia de Antonio Cícero, cuja seleção optou por poemas dos livros Guardar, A cidade e os livros e mais dois, inéditos, Amazônia e Prova, que mereceriam ensaio particular tamanho o alcance e a força de suas cargas metafóricas, da sintaxe da alma, caso prefiram. Não é difícil encontrarmos textos sobre a obra de Cícero onde o foco é o homoerotismo (aqui o pedido de calma número quatro, pois optarei por simplesmente falar amor e erotismo, que diferença fará um prefixo ante um sentimento, podem me dizer?) E é pela lente do amor materializado no efêmero, na fugaz “criatura de um só dia”, que Antonio Cícero retrata a cidade, este motivo exemplar da subjetividade humana, a cidade que coloca um sinal de interrogação diante da identidade humana. Como conseqüência temos o ser individual dividido em outros, quer na literatura, quer no seu próprio interior. A mesma cidade que despreza a solidão de Francisca se debatendo entre o real e o imaginário, ostentando edifícios apropriados para acolher suicidas.
O encontro com Marco Lucchesi não passa pelos solavancos anteriores e o leitor segue os rumores da calmaria em direção ora ao imanente, ora ao transcendente e a lembrança de Octavio Paz é inevitável, “a metáfora e o paradoxo ordenam o mundo”. E o discurso mitopoético de Marco Lucchesi encontrará eco em Salgado Maranhão, “há que se viver o nada/ como se nada,/ nada, nada até sangrar/ que só dão água/ para quem já tem o mar.” Salgado Maranhão iça as velas do lirismo e da transcendência para fugir da metrópole e transmitir a impressão “de um certo navegar para nenhum cais” deixando claras pegadas a indicar que o poeta está condenado a se deparar com seu eu apenas no movimento.
Concerto a quatro vozes é isso e muito mais, sem esquecer da obra individual de cada um desses cavaleiros misteriosos e belos.
Poemas
Adriano Espínola
Pesca
A aurora se desamarra do cais.
Um barco singra o peito
rosado do mar.
A manhã sacode as ondas
e os coqueiros.
O azul estica a linha do horizonte.
Na praia, um pescador arrasta
um sol de algas.
Em suas mãos, um peixe salta:
ó palavra escamosa,
espírito agitado das águas.
…
Antonio Cícero
Eco
A pele salgada daquele surfista
parece doce de leite condensado.
Como seu olhar, o mar é narcisista
e, na vista de um, o outro é espelhado
e embora, quando ele dança sobre as cristas,
goste de atrair olhares extraviados
de banhistas distraídos ou artistas,
é claro que o mar é seu único amado.
Ei-lo molhado em pé na areia: folgado,
ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste
e usa do outro uma gata e um brinco e assiste
serenamente ao horizonte inflamado
e a brisa o alisa e enfim ele não resiste
à beleza e diz “sinistro!” e ouve eco ao lado.
…
Marco Lucchesi
O fim da tarde, Antero
Ó nuvem peregrina que divagas,
perdida nas lonjuras do Ocidente.
Imota, num crepúsculo de chagas,
consomes teu olhar circunferente.
Flutuas esquecida sobre as vagas,
e sabes como é leve e contundente
o pálido infinito com que pagas
os raios últimos do sol poente.
Ao fim da tarde o mundo se desgasta,
as nuvens peregrinas e a amplidão,
as águas claras, a esperança vasta,
o campo adusto, a chuva de verão
e a farta gravidade com que pasta
o boi de nossa funda escuridão.
…
Salgado Maranhão
Da série Mar deriva
Saberemos eclodir o magma
do coração escarpado
quando o sangue é o nosso
único refúgio?
Deixaremos ao desterro
essa faina (fátua) da noite
a moer a inocência?
O amor está deserto. Posso
assistir a ferrugem
das horas ante o que sonha
e o que seca;
Posso perder-me entre cães
sem lua: grito desfiado
em sílabas.
O que há é o entrelace
a litania da palavra ao tempo.
E sua têxtil agonia.