O leitor, no prazer que a narrativa lhe proporciona, não se preocupa com o conceito de literatura. O que seria ela, qual a sua função, o que a caracteriza, quais os principais autores? Nada disso vem à tona no momento da leitura. O que fascina não precisa de definição nem de explicação. No entanto, uma língua não é apenas um código, ou um conjunto de signos que visa à comunicação. Um idioma consagra-se por sua literatura. O que seria o inglês sem Shakespeare, o italiano sem Dante, o francês sem Molière, o espanhol sem Cervantes, o português sem Camões? Devido a esses e a outros autores, tais línguas despertam interesse não apenas na região ou na cultura que lhes deram origem, mas por toda parte. Há mesmo aqueles que se apresentam prontos a aprendê-las, porque desejam usufruir de suas literaturas.
Muitas vezes censurada e negligenciada por pretensas autoridades políticas, religiosas e culturais, a literatura é capaz de resistir. Nada é indestrutível, nada é eterno, mas ela reaparece nos momentos mais inesperados, como entre crises políticas, sociais, sanitárias e mesmo em meio a guerras. Não se trata aqui de um desejo meu ou de idealização desta arte que tantas vezes provoca indignação em quem ocupa o poder. A literatura, como arte, vence obstáculos aparentemente intransponíveis, mesmo que necessite de algum tempo. E ainda tem o dever de abordar assuntos que sofreram e ainda sofrem perseguições e preconceitos durante grande parte da história.
José de Alencar, em Lucíola, não pôde contar às claras a vida de uma prostituta. Precisou inventar muitas justificativas. Proust, em sua obra única e maior, da mesma forma, não pôde tocar abertamente no tema que tanto o afligia: a homossexualidade. Tais autores (ou personagens) tinham de disfarçar comportamentos e desejos, porque se sentiam perseguidos e culpados, não tinham o direito de viver como qualquer ser humano.
A diversidade jamais deveria estar sujeita à pena capital, talvez o maior crime contra a humanidade. Autores percorreram caminhos tortuosos para disfarçar aos leitores e à cultura estabelecida a vida de personagens que segundo este mesmo establishment não tinham o direito de atuarem com protagonistas dos próprios desejos. Nos dias que se seguem, tais desejos são aceitos, ainda que com preconceito e — em muitos lugares — apenas na aparência.
A escola adotaria um livro cujo personagem principal não é um modelo social? A prostituta, o travesti, o gay, a lésbica e tantos semelhantes podem servir de espelho para os jovens leitores? Será que já atingimos a compreensão de que família não é apenas homem e mulher, mas todo tipo de agrupamento onde existe o amor, o afeto? Que poder às vezes se atribui à literatura! Ela seria capaz de “desviar” as pessoas, levá-las a outros modos de vida. Teriam mesmo tanto poder as palavras?
Carta providencial
A palavra que resta, de Stênio Gardel, é um livro que apresenta tais questões. Não propriamente a da literatura e de seu papel, mas a da própria capacidade do ser humano em articular saberes e princípios básicos, como a leitura e compreensão do mundo à sua volta, além de ter de aprender a lidar com seu desejo e não se sentir, por causa disso, uma aberração.
O romance, em 149 páginas, traça o percurso de Raimundo, da juventude à idade avançada, um nordestino deixou sua terra, ainda jovem, devido à incompreensão da família a respeito de sua orientação sexual e/ou afetiva. Ele tem a vida inteira de trabalhos pesados e sacrifícios, porque não conta apenas a questão interior de Raimundo, que é a de amar Cícero, um rapaz de sua idade para cujo pai ele trabalhava, mas o problema é mais fundo.
Em meio ao sentimento, misturam-se os direitos básicos do ser humano. Para que saber ler? “O pai lhe dizia que a letra era para menino que não precisava encher o próprio prato.” A mentalidade dessa espécie de pai patrão deixa o personagem num analfabetismo do qual só se vai livrar com a idade já avançada. Aliás, com a idade avançada, ele também liberta-se da culpa e da vergonha de ser diferente.
Uma carta deixada por Cícero, seu amor de adolescência, guardada durante a vida inteira sem ser aberta, despertará em Raimundo o desejo de aprender a ler.
Mudança fundamental
O livro é dividido em partes, com tentativas de inovação na questão do monólogo interior, com parágrafos que escapam à organização tradicional do texto. Talvez tentativa de burlar as formas fixas, como acontece com os modelos de sociedades humanas, e contra o os quais o romance se posiciona. Da mesma forma que a estrutura, o tempo não obedece à ordem cronológica — idas e vindas mostram a história em porções, como o coração do personagem, tão dilacerado pela vida.
Raimundo passa por vários lugares, sua profissão a princípio é de ajudante de caminhoneiro; depois, torna-se costureiro, quando então conseguirá algum reconhecimento. Há personagens impagáveis, como a travesti Suzzanný e a dona da pensão. Raimundo, em seu caminho, ou mesmo no seu estilo de vida, encontra muita gente que lhe é semelhante, mas gente que também vive a sexualidade de modo escondido.
Episódio marcante no livro é o do conflito com Suzzanný, levado a cabo num ambiente sórdido e de extrema violência, o que provoca a seguir uma mudança fundamental no comportamento de Raimundo.
Questões
Muitas questões podem ser levantadas a partir da leitura do romance, como o Brasil e sua mentalidade tacanha; o Nordeste, sempre visto com descaso e preconceito; as condições socioeconômicas degradantes de um país gigantesco; o conservadorismo, o patrimonialismo; e, sobretudo, num período em que em toda parte do mundo se luta contra a homofobia, o respeito ao homossexual e à cultura advinda deste modo de vida.
O amor e o desejo por pessoas do mesmo sexo não estão aí para serem explicados ou classificados, nem podem ser banidos por meio de convenções estabelecidas pela tradição, pela moral ou ainda pela religião. O que se pode constatar é que existem, aliás, sempre existiram, fazem parte da natureza humana, por isso precisam ser respeitados.
A palavra que resta é o primeiro romance de Stênio Gardel, frequentador assíduo de ateliês de criação literária. Mais uma mostra de que a literatura está viva e passa bem, obrigado.