No excelente Herdando uma biblioteca, Miguel Sanches Neto relata o delicioso momento em que o crítico recebe a correspondência diária, sempre carregada de livros. Alguns de autores conhecidos, outros de desconhecidos, outros deamigos. Livros bons, livros ruins, livros que nem merecem ser criticados. De qualquer forma, escreve Sanches Neto, é sempre um momento prazeroso, esse da chegada de livros novos. Diferentemente do crítico e escritor premiado Sanches Neto, sou apenas um jornalista metido a resenhista, entretanto recentemente tive o prazer descrito por ele na bela crônica O carteiro e o leitor.
Nunca tinha ouvido falar de Severo Brudzinski nem da editora Stultifera Navis, e provavelmente você que me lê agora também desconheça a ambos. Mesmo assim, Severo mandou-me um livro dele, pedindo uma avaliação crítica. Enviei-lhe um e-mail aconselhando que talvez ele devesse enviar a obra a um profissional como Sanches Neto, que eu tenho o mau humor como filosofia de vida e que poderia aplicar isso na resenha de seu livro. Severo não teve receio. Disse que gostaria de resenhas minhas neste Rascunho e queria saber minha opinião sobre seu livro de estréia. Venceu-me pela insistência. Antes, expliquei-lhe que, caso eu considerasse o livro ruim, não faria sentido publicar a resenha, pois ele era um autor desconhecido. Só vale a pena dar pau em quem é famoso e faz sucesso literário sem merecer. Ou em quem é bom é comete um deslize com uma obra menor. Só se justifica divulgar um autor novo quando o trabalho é bom. Ele teve menos receio ainda. Pediu-me que, mesmo que eu odiasse o livro, lhe explicasse por quê, pois ele busca opiniões sinceras sobre o que escreve.
O tal livro é uma novela policial, chamada Os amores e mortes de Gustavo Carbel, que agrada pelo projeto gráfico. Com formato quase de bolso, já que a altura ainda é convencional (21 centímetros), mas com uma largura de 10 centímetros, é fácil de carregar e manusear. A capa, de Osvalter Urbinati Filho, traz uma bela ilustração de quadrinho noir. Quando o recebi pelo correio, causou-me boa impressão, até porque é um livro jeitoso para uma edição de autor. A Stultifera Navis é criação de Brudzinski e só tem em seu catálogo, por enquanto, a obra de estréia de seu dono. A novela narra os dissabores de Gustavo Carbel, que após uma desilusão amorosa tenta o suicídio abrindo o gás no apartamento. Mas é justamente a tentativa de suicídio que causa uma reviravolta na vida de Gustavo, pois ele falha e acaba acordando dias depois no hospital. Além de ter que encarar os companheiros de escritório novamente depois do fracasso em se matar, Gustavo ainda fica com a dívida do belo terno que comprara para morrer bem trajado.
Ele acaba então reencontrando o barbeiro Fagundes, que lhe cortara o cabelo no dia em que pretendia deixar este mundo. O barbeiro havia sido premonitório naquela data, dizendo que a hora de Gustavo não tinha chegado, mesmo sem saber das intenções do suicida. Fagundes revela-se então um estudioso da morte e diz interessar-se pelo caso de Gustavo. “Acredito, assim como vários pensadores, que quando se estuda a morte em toda a sua plenitude, podemos nos preparar melhor para a sua chegada”, diz o barbeiro.
Começa então uma estranha relação entre os dois, e que motiva Gustavo a estudar as diversas formas de matar, pois já que o suicídio falhara, que se mudasse a vítima: Gustavo quer agora encontrar a melhor maneira de assassinar aquela que lhe causara a desgraça amorosa. Apesar do clima sombrio, o final do livro surpreende, mostrando que se libertar do inferno em que se pensa viver não é necessariamente um caminho difícil. Além de história policial, Os amores e mortes de Gustavo Carbel é uma narrativa que discute algumas questões como morte, suicídio, amores e traições, mas sem perder o foco da trama. O texto é agradável e sem floreios, com prioridade para a fluidez. Como pano de fundo, é interessante acompanhar como Gustavo Carbel perambula pela região central de Curitiba, já não uma cidade modelar como se imagina mundo afora. Severo Brudzinski acertou ao optar pela simplicidade. Assim, a condução da novela é segura e preserva o mais importante, que é prender o interesse do leitor pelo desfecho da história. Acertou também ao insistir que eu lesse sua novela. Apesar da agradável sensação de receber um livro pelo correio, nada garante que ele venha a ser lido, como alerta Sanches Neto (“Mesmo sabendo que boa parte do que recebo não será incorporada a minha biblioteca interior, não consigo deixar de me emocionar na hora de abrir os envelopes e de sacar o livro”).
Bem-vindo à nau dos insensatos, Severo.