Amoral, ilegal e sem limites

Edward Pimenta construiu um personagem único na literatura brasileira, Horace Catskill — o protagonista de “O homem que não gostava de beijos”
Edward Pimenta: obra excêntrica na literatura brasileira contemporânea.
01/04/2007

O protagonista de O homem que não gostava de beijos foi um garoto mau. O protagonista de O homem que não gostava de beijos foi brasileiro durante a Golden Age do cinema americano. O protagonista de O homem que não gostava de beijos foi, também, o maior protagonista da miscigeno-sifilização brasileira. O protagonista de O homem que não gostava de beijos foi aprovado nos testes de força para a Aeronáutica. O protagonista de O homem que não gostava de beijos fundou seitas ao longo de sua libidinosa existência. O protagonista de O homem que não gostava de beijos comeu um ícone do feminismo. O protagonista de O homem que não gostava de beijos brigou com os cavaleiros do desconstrucionismo. O protagonista de O homem que não gostava de beijos transformou-se numa mosca e se instalou nas reentrâncias da prótese nasal de silicone de Michael Jackson. O protagonista de O homem que não gostava de beijos foi, acima de tudo, um ateu, muito mais por um convicção íntima do que pela falta de educação religiosa. O protagonista de O homem que não gostava de beijos ainda foi um terrorista decadente. O protagonista de O homem que não gostava de beijos, eis uma chave para compreendê-lo, foi um homem que não teve infância. O protagonista de O homem que não gostava de beijos teve, tem um nome. Ele se chamava, chama Horace Catskill.

Horace Catskill, o homem que não gostava de beijos, realmente não gostava de beijos. Ele, entretanto, gostava, muito, das mulheres. Mas, predador nato?, fez a opção, unicamente, apenas, pelo contato sexual e nada mais. HC nunca quis saber de nenhum tipo de envolvimento emocional. Com nada. Com ninguém. Sobretudo, com mulheres. HC optou, entre outras coisas, pela ação contínua. Sem descanso. Sem paz. HC gostava de guerra. De confronto. De enfrentamento. HC tinha, talvez intuitivamente, noção de que o homem é aquilo que ele, homem, faz. HC não fazia discurso. HC não fazia promessas. Mas HC verbalizava. E, entre tantas frases, poderia ter enunciado que “homem que é homem não dança”. Mas isto HC nunca disse. HC, também, naturalmente, tinha lá as suas idiossincrasias. “Excêntrico, não bebia água por considerá-la demasiado ordinária. Apenas duas cervejas importadas, uma no almoço, outra no jantar”. Ah, HC trocava de amantes em prazos fixos: a cada oito meses. HC, o homem que não gostava de beijos, chegou a ficar banguela. E daí?

Romance ou contos?
O homem que não gostava de beijos é um romance ou um livro de contos? Cada capítulo (ou conto?) traz uma aventura, uma situação de Horace Catskill — e, então, cada capítulo pode ser lido, sim, como um conto (encerrado em si). Num determinado capítulo (ou conto?), ele está contextualizado, por exemplo, em 1756. Em outros capítulos (ou contos?), HC vive o século 20. O homem que não gostava de beijos, eis, pode ser lido como um livro de contos e, simultaneamente, pela leitura seqüencial dos capítulos (ou contos?), também pode ser lido como um romance.

Romance este, ou livro de contos este?, em que o protagonista se move sem culpa, nem medo de punição, sem limites enfim — o tempo todo, em tempos diversos, sempre em busca de uma inédita mulher a ser desfrutada. E HC nunca se satisfaz. Quer mais. Sempre mais. HC devora. Meninas. Mulheres. Mulheres de amigos. Anônimas. Celebridades. Madonna antes da fama. Uma tal de Sylvia Saint. Inclusive, se contamina com o HIV e passa Aids para essa tal de Sylvia Saint. HC tem fome. É insaciável. Consumidor? Sim, se em determinado momento HC está inserido na era do consumo, ele, ávido, se move em busca de carne humana feminina. HC parece não acreditar no futuro, apenas no contínuo presente, presente em que há apenas uma meta: transar com a próxima e disponível mulher.

O temor de HC
Tudo faz sentido. Nada faz sentido. O tempo faz sentido? O tempo parece não existir para HC. O que é o tempo, mesmo, essa máquina de fazer tudo ou nada? O que é a realidade? A realidade, inesperada, que se impõe inexorável e devastadoramente? O que a realidade tem a ver com a ficção? A realidade de HC só existe dentro do enredo elaborado por Edward Pimenta. Ou não? Como pode um mesmo personagem transar com a Madonna antes da fama e esse mesmo personagem se transformar em uma mosca e entrar no cérebro de Michael Jackson? O que é HC? O que o move? Talvez, o temor diante da inevitável ruína, diante da ameaça da morte. Ou não? HC não passaria, talvez, de um autêntico highlander de hálito ancestral? Afinal, ele, entre outras coisas, “dorme com dois revólveres embaixo do travesseiro. Não passou um único dia de sua vida adulta sem rivotril”. HC, acima de tudo, “não diferencia o fazer do pensar”.

E, então? Precisa dizer que O homem que não gostava de beijos é, no mínimo, uma obra excêntrica em meio ao que se apresenta neste presente Brasil literário? É necessário salientar que Edward Pimenta escreve bem e é capaz de encerrar o seu livro com frases como: “Nas franjas da vida, o ar rareou, o diafragma desistiu e a atmosfera tornou-se completamente sólida. Numa das últimas imagens do sonho, via a delicada fímbria do horizonte e as estrelas. Com o lascar dos ossos, dois estalos, e a estrutura chapou o corpo assustado, desperto num afogar do travesseiro, acelerado pela sensação de cair e cair”?. E fica evidente que você, leitor ou leitora do Rascunho, desde já, recebe como opção o convite para, se quiser, desconstruir tudo o que este resenhista escreveu a respeito de O homem que não gostava de beijos (o e-mail do jornal é [email protected]). Ou, então, você leitora, pode também escrever, por exemplo, me enviando um beijo. Ou não.

LEIA ENTREVISTA COM EDWARD PIMENTA 

O homem que não gostava de beijos
Edward Pimenta
Record
126 págs.
Edward Pimenta
Nasceu em Mirassol (SP), em 1974. É jornalista e trabalha como editor de Treinamento e Desenvolvimento Editorial da Abril. É autor do romance Duas histórias (1995) e foi um dos contistas selecionados pelo 1º Concurso Cultural Caderno 2 — São Paulo 450 Anos, do jornal O Estado de S. Paulo.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho