Londres é uma das cidades mais badaladas do mundo. Uma rápida busca na internet traz inúmeros sites com informações a respeito da capital inglesa, mais especificamente sobre seus museus, sua história, além, é claro, das notícias que fazem dela um dos epicentros culturais desse mundo globalizado. Por tudo isso, um livro que se propusesse a apresentar Londres para os leitores incautos poderia parecer uma tremenda pretensão — principalmente se for levado em consideração que, hoje em dia, qualquer um pode ter acesso aos melhores guias de viagem nas mais diversas livrarias mundo afora. Entretanto, a editora José Olympio decidiu arriscar: no livro Cenas londrinas, a escritora Virginia Woolf (1882-1941) apresenta Londres e suas particularidades aos leitores.
Trata-se de um livro curto, principalmente por ser uma obra de Virginia Woolf, cujos romances costumam ser entrecortados por uma narrativa centopéica ou subjetiva, como escreve o crítico Ivo Barroso no prefácio. O leitor, entretanto, surpreende-se com a argúcia dos detalhes destacados pela escritora ao longo dos ensaios. A autora de As ondas e de Orlando, nesta coletânea de textos, prima pela objetividade, no que contrasta com a forma dos seus romances mais comentados. E mesmo se comparado com os diários, nota-se nessas Cenas londrinas uma linearidade, uma outra perspectiva, que acaba por ser mais uma evidência do talento e da versatilidade da autora.
Nesse sentido, além da já citada apresentação, um detalhe que chama bastante a atenção é a unidade que os ensaios possuem. Num primeiro momento separado pelo título e, por extensão, pelos temas abordados, a leitura mostra como eles, em verdade, estão ligados uns aos outros. Assim, se no primeiro texto a autora escreve a partir da visão privilegiada de uma observadora do porto de Londres, como se mostrasse a entrada da cidade (o aeroporto de Heathrow estava absolutamente fora de cogitação), no último, ao escrever sobre uma celebridade da época, ressalta o seu interior, algo que só era perceptível para quem conhecia a cidade por dentro, como Virginia Woolf.
Talvez pelo fato de ter sido tema de um filme (recente) que foi premiado pelo Oscar — As horas, estrelado pela contundente Nicole Kidman — tratar da obra de Virginia Woolf exige um esforço de distanciamento daquela imagem projetada no cinema. No caso de Cenas londrinas em específico, este esforço se mostra válido e possível graças à sua devoção por Londres que não é tão contundente assim em seus escritos. Com efeito, no livro, para além de uma observação arguta ou até mesmo de uma apresentação da cidade (algo semelhante ao “Escritor e a cidade”), o que se lê é o relato de alguém que tem tamanho apreço pela cidade, que cada movimento da metrópole, nos áureos e ilustrados tempos do Império Britânico, está presente em suas descrições como se confessasse (ou justificasse) ao leitor o motivo de sua admiração pelo lugar.
Desse modo, ao contrário dos adjetivos e odes, a escritora presta homenagem à sua cidade natal com uma caracterização que esbanja virtuosismo e riqueza literária. É assim, por exemplo, que a autora disseca o ambiente das Docas em Londres: “(…) Assim vão chegando mil desses grandes navios a cada semana para ancorar nas Docas de Londres. (…) [Então,] os motores param; as velas são recolhidas; e, de súbito, as ostentosas chaminés e os altos mastros exibem-se desajeitadamente contra uma fileira de casas de operários, contra as paredes negras de enormes armazéns.” Depois das Docas, o leitor é guiado pelas palavras da escritora até a Oxford Street, onde pode, junto com a autora, contemplar o comércio frenético que, de certa maneira, seria um prenúncio do que ocorre hoje nas grandes cidades, cujo principal atrativo para boa parte dos turistas não é a história ou a vida cultural, mas os centros de compras.
Da rua Oxford para as “Casas de grandes homens”. Neste texto, a escritora torna-se uma espécie de cicerone cultural, mostrando não somente os objetos, mas os elementos da vida privada de autores como Thomas Carlyle (1795-1881) e John Keats (1795-1821). Do primeiro, aprende-se que viveram, ele e a esposa, num campo de batalha por uma condição de vida razoável (não confundir com os conceitos de “qualidade de vida”, em voga nos anúncios publicitários). Nas palavras de Virginia Woolf: “Mrs. Carlyle rememorava os diversos problemas da batalha contra a sujeira e o frio”. De Keats descobre-se que, mesmo após a morte do poeta, a sua casa conservava sua presença, ainda que em tom de respeito e silêncio.
Abadias e catedrais
Dos interiores, Virginia Woolf segue para as abadias e catedrais, indicando o ar solene desses lugares. Nesse sentido, a escritora é conclusiva acerca de como alguns espaços se confundem não só com a cidade, mas, sobretudo, com as pessoas (personalidades). “A abadia é cheia de reis e rainhas, duque e príncipes (…) Mas a abadia é repleta também de outra realeza ainda mais potente. Ali estão os poetas mortos meditando, questionando o significado da existência.”
No texto seguinte, em que versa acerca da Câmara dos Comuns, a autora esboça, aqui e ali, algumas considerações que, para os analistas mais criteriosos, seriam uma confissão de seu conservadorismo (algo como ato falho). Entretanto, os leitores ganham mais se deixarem essa interpretação de lado e preferirem a graça do efeito literário. Desse modo, mais do que uma observação (possível) do modus operandi do Governo, o ensaio funciona como uma versão da personalidade dos homens públicos e dos políticos à luz do poder que representam — simbolizado, nesse caso, pela Câmara dos Comuns.
Este exercício de observação, análise e descrição termina com o curioso artigo Retrato de uma londrina. Aqui, não seria um despropósito fazer uma relação entre o texto de Virginia Woolf e o capítulo Um amor de Swann, escrito por Marcel Proust (1871-1922) em No caminho de Swann (primeiro livro da série Em busca do tempo perdido). No início desse texto, Proust escreve que “Para fazer parte do pequeno clã de Mme. Verdurin, bastava uma condição, mas esta indispensável: aderir tacitamente a um credo (…) Qualquer novo recruta que os Verdurin não pudessem convencer de que as recepções das pessoas que não os freqüentavam eram aborrecidas como a chuva, via-se imediatamente aborrecido”. Do mesmo modo, guardadas as devidas proporções de sempre, Virginia Woolf também mostra aos leitores uma personagem, Mrs. Crowe, que também tinha como hábito a presença de convivas que viam nela o epicentro da cena londrina, como se fosse parada obrigatória de uma sociedade em ebulição. A referência ao texto de Marcel Proust, nesse caso, vai além da coincidência. É Edmund Wilson, crítico literário norte-americano, quem aponta o fato de o escritor francês freqüentar a literatura inglesa e, por extensão, seus hábitos literários, como o chá da tarde. Nesse caso, o autor também parece ter tomado emprestado, e aplicado à sua maneira, as relações sociais edificadas a partir da importância dos convidados à mesa. Estes, por sua vez, participavam de um teatro de máscaras que é desvendado pelas palavras dos autores (Além de Proust, Henry James [1843-1916] também articulava cenas de seus romances dessa maneira, a ponto de ser uma referência citada pela própria Virginia Woolf no texto). Assim, neste ensaio que encerra o livro, os leitores acabam por descobrir não somente o retrato de uma londrina, mas uma faceta da sociedade daquela época. E aqui as palavras da escritora não poderiam soar mais reveladoras: “para conhecer Londres não apenas como um espetáculo deslumbrante, um mercado, uma corte, uma colméia de indústria, mas como um lugar onde as pessoas se encontram, conversam, riem, casam-se e morrem, pintam, escrevem e atuam, mandam e legislam, era essencial conhecer Mrs. Crowe”.
Depois destes seis ensaios, num livro cuja extensão é inversamente proporcional ao interesse que desperta, Virginia Woolf não transforma Londres com suas palavras, mas faz com que os leitores se apaixonem pelo estilo e pelo sabor literário que a cidade é capaz de provocar.