Amor, guerra e fé

“Neve”, de Ohran Pamuk, ganhador do Nobel de 2006, trata dos conflitos políticos e religiosos na Turquia
Ohran Pamuk: linguagem e ritmo perfeitos.
01/02/2007

Sem grande destaque nas letras mundiais ou sem ter feito um currículo muito longo na literatura, o escritor turco Orhan Pamuk surpreendeu com sua escolha para levar o Nobel de literatura de 2006. Outros que estão na fila há mais tempo, como é o caso, só para citar um exemplo, de Mario Vargas Llosa, foram solenemente preteridos em mais essa oportunidade.

Não sou atraído por um livro por causa de prêmios que tenha recebido. E muito menos pelo Nobel, que é o mais cobiçado de todos, não só por sua repercussão, mas também pelo valor em dinheiro.

Talvez o nome do escritor seja um fator considerável nessa atração. Mas Orhan Pamuk, muito pelo contrário, não é um nome que tenha algum fascínio especial.

Neve é um calhamaço de 488 páginas, envolvendo uma história banalíssima, que, por ela mesma, não prende a atenção do leitor. Trata-se de Ka (personagem principal — o nome teria alguma conotação com Ka, de Kafka, de duas novelas? Essa hipótese, em dado momento, é levantada no livro), que se auto-exilou em Frankfurt, na Alemanha, e, depois de l2 anos, retorna ao seu país, a Turquia, para explicar-se o motivo por que as mulheres estão se suicidando.

Ka é um poeta em tempo integral e, por isso mesmo, de todas as coisas, boas ou más, recolhe motivos para compor seus poemas.

Numa cidadezinha da Turquia — Kars —, ele encontra um ambiente político conflituoso, envolvendo de um lado um regime de governo republicano, com características ocidentais, e de outro uma revolução prestes a se desencadear, promovida por muçulmanos, que têm em “Azul” uma espécie de líder carismático. Nesse pano de fundo, desenrola-se o amor de Ka por Ipek, que é uma mulçumana linda, cujo pai, embora de formação árabe, mostra clara tendência ao sistema republicano de governo.

Há uma segunda filha, irmã de Ipek, que foi amante de Azul (ambas o foram simultaneamente). Elas têm uma aliança com a revolução muçulmana (ou se mostra duvidosa em manter uma linha a favor desse ou daquele movimento). Mas sabe tudo sobre Azul, inclusive o local onde se esconde para fugir à perseguição dos republicanos, pois é considerado um perigo à segurança do regime.

Tudo o que Ka pretende é casar-se com Ipek, pela qual se apaixona, levá-la para Frankfurt, e ali instalar um lar onde possam viver longe da violência e de um conflito interminável entre duas facções antagônicas.

Marca um encontro com Ipek para levá-la à Alemanha. Ipek não comparece ao embarque. Quando Azul foi encontrado em seu esconderijo e morto, ela julga que ele o entregou aos adversários, que lá esteve com sua irmã para entabular negociação em torno de uma solução política. Mesmo sem Ipek. Ka volta à Alemanha. Sua vida solitária repercute em Kars, pois o rompimento com Ipek o destroçou. Sem ela, vive feito um fantasma. Mas lá é morto (a morte de Ka ocorre cerca de 50 páginas antes do término do livro, o que rouba um pouco o clímax esperado para o fim do romance), presumivelmente pela milícia islâmica, que passou a odiá-lo, na suposição de que tenha traído Azul ou fornecido o endereço de seu esconderijo, o que é um dado que não se esclarece até o desfecho da novela.

A irmã de Ipek se apresenta num espetáculo de teatro com um turbante que tradicionalmente é usado pelas mulheres muçulmanas à cabeça, como prova de pureza e de sua ligação à tradição islâmica. Num dado momento, ela o arranca e, assim, adere à república.

Afora isso, o livro de Pamuk vale por ter sido extremamente bem escrito, motivo pelo qual o leitor se enreda na leitura até o fim. Há quem não tenha esse fôlego. E desde as primeiras páginas é vencido por alguns capítulos um pouco menos atraentes e até mesmo bastante pesados.

Para ser um Nobel, acho que Neve devia ter mais peso. Comparando-o, por exemplo, a Grande sertão — veredas, fica a uma distância considerável em qualidade literária.

Tem alguma política envolvendo o prêmio Nobel? Há aquém acredite que sim, outros que não.

Pamuk compareceu à Academia de Estocolmo para receber o prêmio e fez um discurso, como é praxe, dizendo a tolice de que seu pai, quando leu um livro dele para opinar sobre seu valor, lhe teria antecipado que um dia seria ganhador do Nobel. O que guarda muita semelhança com histórias da carochinha.

O pai lhe entregou uma valise cheia de textos feitos por ele. Pamuk nunca a abriu. Nunca se interessou em lê-los ou conhecer seu teor. Por quê? A resposta fica no ar.

O discurso é de conteúdo muito ridículo. Custa crer que um prêmio Nobel tivesse desfilado tantas frioleiras.

O livro de Pamuk figura, ainda agora, na lista dos mais vendidos. Emprestei meu exemplar para um amigo escritor, que correu da raia já nas primeiras páginas.

Como disse, fui até o fim, sorvendo todo o cálice agridoce de uma história sensaborona. Não vou ao exagero de que foi aos trancos e barrancos. Trata-se de uma leitura de certo modo interessante porque Pamuk tem o dom privilegiado de construir belas frases.

Aí reside o sucesso desse livro.

A história tem também lances movimentados e curiosos.

No geral, resume-se ao que ficou dito: um conflito cultural e político e, entrementes, um amor dilacerante de Ka por uma mulher fascinante, Ipek, que, por motivos também políticos, rompe com esse amor e com a felicidade que certamente esperava o casal na Alemanha.

A linguagem é sem dúvida alguma o ponto alto dessa obra. Não li nenhum outro livro de Pamuk. Mas creio que a Academia da Suécia levou esse fator grandemente em conta para lhe conferir o cobiçado prêmio.

Neve
Orhan Pamuk
Trad.: Luciano Vieira Machado
Companhia das Letras
488 págs.
Orhan Pamuk
Nasceu em Istambul, em 1952. Estudou engenharia, arquitetura e jornalismo. Dedica-se inteiramente à literatura desde 1974. Por Meu nome é vermelho, também editado no Brasil, recebeu o importante prêmio irlandês Impac, destinado à melhor obra de ficção publicada em língua inglesa em 2003. O primeiro livro de Pamuk traduzido no Brasil foi O castelo branco, em 1994.
Hamilton Alves
Rascunho